Conquistas e desafios milenares
Um dos debates agendados para o Palco Solidariedade que mais curiosidade suscitou ocorreu sábado à tarde. O tema – os 90 anos do Partido Comunista da China, e as grandes conquistas e desafios daquele país – levou centenas de pessoas à praça central do Espaço Internacional, onde se reflectiu e questionou criticamente não apenas o processo em curso naquela nação, mas também o percurso, análise e papel dos comunistas chineses.
A realização de uma discussão sobre uma matéria que desencadeia tantas e tão apaixonadas opiniões e dúvidas; sobre a qual pesa, amiúde, o manto da desinformação e da intoxicação da opinião pública, merece, só por si, ser destacada.
Quantos são os países imperialistas que se prestam ao juízo alheio e à discussão sobre as respectivas opções políticas, económicas e sociais, fazendo-o, para mais, perante uma plateia popular heterogénea, informada, consciente e interventiva? Quantos partidos convidam partidos com os quais têm relações cordiais, como as existentes entre o PCP e o PC da China, para um fórum instalado ao ar livre num recinto com milhares de pessoas, e, descomplexadamente, passam o microfone de mão em mão para que todos expressem livremente a sua opinião e coloquem as questões que entendem?
Só o PCP não deserta do debate e da discussão, fazendo-o apesar das diferenças de concepção e projecto que pode ter (e tem) com outros partidos comunistas e operários, ou com países e povos que assumem o objectivo de construir o socialismo.
A revolução na história
Depois de Albano Nunes, do Secretariado do Comité Central do PCP, ter contextualizado brevemente o tema do debate, Wang Hua, expressando-se num português fluente, admitiu que os desafios no território mais populoso do mundo (actualmente com 19 por cento do total mundial), com uma cultura e história milenares e 56 grupos étnicos, mas com menos de 7 por cento do conjunto dos solos aráveis do planeta e 6 por cento da água, são colossais.
Em 1949, o Partido Comunista Chinês derrubou o poder burguês e expulsou os invasores japoneses, terminando com décadas de rapina dos recursos naturais do país pelas potências imperialistas. Passa a dirigir um país pobre, profundamente desigual, e, mais do que subdesenvolvido, de um atraso feudal e colonial. Com o auxílio da URSS, sublinhou o dirigente, deitaram mãos a tarefas prioritárias como a de erradicar o analfabetismo em que se encontrava 80 por cento do povo, ou alimentar milhões de seres humanos, incluindo os que habitavam em áreas remotas, logrando acabar com 3600 anos de vagas de fome. Para muitos chineses o fim da fome crónica com que se debateram sucessivas gerações permanece como uma conquista inolvidável.
Hoje, a República Popular da China é um país radicalmente diferente, tendo alcançado, sob direcção do Partido Comunista e em pouco mais de 60 anos, patamares de desenvolvimento económico e progresso social assinaláveis, disse.
É o primeiro produtor mundial de mais de 200 bens industriais; detém uma rede de comunicações e de infra-estruturas de ponta; assegura o acesso gratuito à saúde e à educação, e uma reforma com menos percalços materiais a uma população cuja esperança média de vida duplicou, passando de 35 anos em 1949 para os actuais 72; garante a preservação do idioma, cultura e modo de vida de 22 comunidades minoritárias.
O caminho foi acidentado e obrigou a correcções de erros graves, como os cometidos durante a chamada Revolução Cultural das décadas de 60 e 70, deixou claro Wang Hua.
Mesmo hoje, os desafios continuam a ser gigantescos, já que 150 milhões de chineses são considerados pelo governo como pobres e a corrupção manifesta-se ao nível do aparelho administrativo, em resultado do acelerado impulso ao desenvolvimento industrial baseado na iniciativa privada e ao surgimento de uma burguesia local forte, acrescentou.
Caminho peculiar
A existência de um partido dirigente com mais de 80 milhões de membros, todos, incluindo o secretário-geral do partido e presidente do país, obrigados a militar numa organização de base, permite um contacto com a realidade concreta e, com base nela, estimula-se a reflexão colectiva para solucionar os velhos e novos problemas. A linha mestra da orientação política da China é o marxismo ajustado às peculiaridades chinesas, afirmou Wang Hua.
Nesta fase, salientou ainda, a China encontra-se na transição para o socialismo, uma vez que, entende aquela direcção comunista, a passagem para uma sociedade que inicie a construção de uma outra sem classes sociais e a exploração do homem pelo homem obriga a um elevado grau de desenvolvimento capitalista. A China permanecerá nesta fase preparatória até meio do actual século, explicou.
Esta análise do PC da China motivou questionamentos críticos entre a assistência, que levantou dúvidas pertinentes, por exemplo, quanto à liberdade de acção e organização dos trabalhadores num país que afirma pretender construir o socialismo mas estimula a iniciativa empresarial cujo fim é a obtenção do lucro através da extorsão da mais-valia.
Central no diálogo vivo entre o público e Wang Hua foi, igualmente, o facto do PC da China ter alterado, em 2002, durante o seu 16.º Congresso, uma parte dos estatutos. Com essa alteração, os comunistas chineses passaram a definir o seu partido como a vanguarda de todo o povo chinês e não apenas da classe operária e dos trabalhadores, isto é, definiram-se, enquanto organização, como promotores dos interesses de outras classes e camadas sociais que não apenas o proletariado.
«Quem brinca com o fogo queima-se», notou uma camarada que perguntou se o PC da China não temia perder, com tal medida, o controlo da direcção do país e afastar-se do objectivo do socialismo.
Wang Hua insistiu que tal é a única forma de manter coesos em torno do partido e do projecto um conjunto de sectores sociais que neste momento têm peso na sociedade e interesse no modelo de desenvolvimento económico e social implementado.
A respeito de uma outra pergunta sobre as posições da China em matéria de agressões imperialistas contra povos e países, Wang Hua considerou que todas as opções tomadas pela República Popular têm servido os interesses da paz mundial e da solução dos conflitos pelo diálogo.
Pesem as diferenças de apreciação reveladas, a esmagadora maioria dos participantes no debate pareceu abandonar a iniciativa partilhando uma certeza: os comunistas portugueses e os seus camaradas de outros países demonstram coragem para abordar fraternalmente as questões mais delicadas. Este é um facto que nunca é demais assinalar quando a burguesia mundial recorre a tudo para impor, sem direito ao contraditório, o seu modelo e ideologias como únicos.