As Artes Plásticas na Festa
Em ano de Bienal, as Artes Plásticas tiveram uma focagem particular na Festa. E será talvez a altura de sublinhar um aspecto importante dessa focagem. É que se, em geral, se dá o merecido destaque ao que se passa no Pavilhão Central (este ano ainda mais justificado pela exposição de um significativo número de obras inéditas de Álvaro Cunhal), será talvez altura de integrar na abordagem das Artes Plásticas na Festa os valiosos elementos criados para embelezar, destacar e dar identidade e unidade gráfica aos espaços das diferentes organizações regionais. Este ano, mais uma vez, houve em diversos espaços trabalhos que merecem atenção, quer pela força plástica e originalidade de várias opções, quer pelo resultado alcançado com a economia de meios que é essencial neste tipo de comunicação. Não sendo possível neste texto uma referência exaustiva aos muitos exemplos, dois destaques apenas: a força da imagem gráfica nas mãos utilizadas na decoração do espaço da ORL (prejudicada embora por uma presença algo descontínua) e o excelente painel à entrada do espaço da ORS com a silhueta de um operário fundidor enquadrada pela pirotecnia das faúlhas do metal incandescente ao ser lançado no molde.
Acerca da XVIII Bienal, com 66 obras de 46 artistas, algumas breves notas. Em primeiro lugar, a positiva continuidade de traços que distinguem e identificam a Bienal da Festa: a participação de criadores tanto com formação académica específica como autodidactas, e a diversidade de opções técnicas e estéticas adoptadas. Num outro plano de registo, a prevalência de vias não-figurativas e sobretudo não-realistas nas obras presentes, e a prevalência da pintura sobre outros meios de expressão (com um decréscimo da presença de obras tridimensionais). Mas esta observação deve ser matizada com a referência à tendência para a mistura de meios. Por exemplo: a escultura que é também uma pintura suspensa na parede (Miguel Oliveira); a pintura que se torna tridimensional (Ildebranda Martins); a escultura em arame que se visualiza como um desenho tridimensional (David Oliveira); o vídeo em que imagem real se entrelaça com grafismos em movimento (Namora Caeiro); o significativo número de obras em técnica mista; a fotografia trabalhada como gravura (Cláudio Garrudo).
Um outro elemento de curiosidade: a presença de obras que aparentam continuidade com movimentos de ruptura artística da primeira metade do século XX, nomeadamente com certos aspectos do dadaísmo e do surrealismo, como sucede com o «ready-made» de Alberto Almeida ou com a série «Em nome do pai» de Betânia Pires/Ana Cruz (cujo 3/5, o coração-granada-de-mão, é um ícone poderosíssimo), ou ainda com a pintura/cartoon/sátira política de Eleitão. No caso de Namora Caeiro, essa continuidade é explicitamente assumida em relação ao inicialmente surrealista Arnulf Rainer, em dois vídeos quase simétricos (num os grafismos surgem como um estertor do corpo, noutro são partes do corpo que surgem como estertor dos grafismos).
É inviável, embora injusto, fazer uma referência detalhada a todas as obras expostas. Mas há uma referência final indispensável. É que a Bienal reservou um espaço à memória de alguns dos seus construtores que, desde a anterior Bienal, já não estão entre nós: Manso Pinheiro, Fátima Neves, José António Flores, Maria Keil, José Cândido, Boavida Amaro (que teve uma obra exposta). Numa Bienal que procura perspectivas de renovação, eles e tantos outros que a construíram como grande espaço de encontro entre a arte e o povo permanecerão presentes.
Integrou-se também no espaço da Bienal uma exposição de 63 desenhos e pinturas de Álvaro Cunhal, na sua quase totalidade inéditos. Para quem – como quase todos nós – apenas conhecia as duas séries publicadas de «Desenhos da Prisão» e as pinturas «Projectos», a visão de conjunto proporcionada tem aspectos surpreendentes e permite uma avaliação, sobretudo do desenho, muito enriquecida. Rogério Ribeiro, referindo-se aos desenhos da prisão, observava «um fazer lento, uma demora que procura a exigência, não o traço rápido corrido, espontâneo, mas a tentativa de uma conquista global, serena e intensa». E o que nos mostra este conjunto de desenhos para além dessa justa observação? Mostra-nos em vários casos um Álvaro Cunhal que domina esse «traço rápido corrido, espontâneo» e até com um notável virtuosismo de desenho, como sucede com um dos desenhos dos anos 50 e, sobretudo, com o magnífico retrato de Avelino Cunhal dos anos 30, desenhado a lápis azul. Mostra-nos, assim, como também na sua obra plástica Álvaro Cunhal desenvolve um percurso coerente, feito de opções e escolhas formal e esteticamente reflectidas, e muito pouco condicionado por limitações oficinais ou técnicas. Mostra-nos um muito jovem Álvaro Cunhal experimentando algo que poderá corresponder à reflexão de Cézanne sobre a presença de «cubos, pirâmides e cones na natureza» (1928), desenhando a tinta-da-china de uma forma que evoca Beardsley (1929), produzindo bandas desenhadas que evocam Wilhelm Busch ou Rudolf Dirks, ou desenhos satíricos na linhagem que vem de Bordalo a Stuart, ou a Georg Grosz, como poderemos supor em dois desenhos, um dos quais realizado no período de prisão nos anos 50. Mostra-nos um notável ilustrador do imaginário da literatura infantil. Em resumo, mostra-nos um muito rico universo interior, uma atenta curiosidade acerca das vias e formas da expressão plástica que desenvolverá, mesmo nas mais penosas condições, ao longo da vida. A exposição cita a sua afirmação de que «gostaria de saber pintar». Mas as obras expostas confirmam um percurso de notável amadurecimento que vai muito além do simples desejo de desenhar ou pintar.