Acordai!, Acordai!, Acordai!
No final do concerto sinfónico de sexta-feira milhares de pessoas, na plateia do Palco 25 de Abril, acompanharam em coro a frase cantada por Cátia Moreso com que o espectáculo terminou. A última palavra que todos, cantora e público, clamaram nessas derradeiras notas foi esta: «Acordai!».
Entoada pela voz lírica do palco, com o suporte da Orquestra Sinfonietta de Lisboa, em nota aguda, situada no limite humano de uma voz mezzo-soprano, esse apelo para o inconformismo, para a denúncia, para a revolta dos adormecidos, dos esquecidos, dos subjugados, culminou o anterior chamamento triplo, emotivo, do refrão da canção, ouvida por duas vezes: «Acordai!, Acordai!, Acordai!».
A orquestração de Ana Seara e o trabalho do maestro Vasco Pearce de Azevedo, adicionados à interpretação de excelência de Cátia Moreso para essa última das três «Canções Heróicas» ali tocadas, compostas pelo compositor e militante do PCP Fernando Lopes-Graça, tiveram tal brilhantismo e impacto que se tornou inevitável ser essa a escolha para o «encore» com que o concerto terminaria.
Antes disso ficaram quase duas horas de musica sinfónica ouvida por uma enorme plateia, atenta a seguir a história que, numa celebração dos 100 anos do PCP, aquele espectáculo pretendia contar: a forma como a arte musical se revolucionou do ponto de vista estético nos últimos séculos e os exemplos de como, nesse mesmo período, a arte musical se empenhou muitas vezes em projetos revolucionários da sociedade.
O exemplo escolhido para ilustrar a revolução da estética musical deste período foi dado com três andamentos de sinfonias de Beethoven: 3.ª, 5.ª e 7.ª sinfonias.
Como exemplos de música empenhada socialmente estiveram três canções adoptadas há 200 anos pelos revolucionários da Comuna de Paris, orquestradas por Filipe Melo; três canções do grande compositor do século XX e militante comunista, o alemão Hanns Eisler, orquestradas por Carlos Garcia e, por fim, as referidas três Canções Heróicas de Lopes-Graça, escritas como instrumento de combate ao fascismo português.
No final, antes do «encore», o programa incluiu a «Abertura Clássica sobre um Tema Popular Português, Op. 87 (1991)», de António Vitorino de Almeida, peça composta em cima da «Carvalhesa», a música tradicional que serve de base para a acção política da CDU e que habitualmente abre e fecha o programa dos espectáculos da Festa do Avante!.
A orquestra Sinfonietta e o maestro Vasco Pearce de Azevedo (que trabalho tão bem feito!) não tiveram autorização para descansar: este programa, de alta intensidade, colocou um verdadeiro desafio físico, emocional e, até, técnico a todos os músicos deste espectáculo, desafio superado com muita qualidade e, como foi evidente no final, com grande e contagiante alegria – depois dos aplausos e agradecimentos a todos os envolvidos (incluindo Vitorino de Almeida e Filipe Melo, que assistiram ao espectáculo), Cátia Moreso liderou os músicos da orquestra para dançar e pular com o público a «Carvalhesa», que sinalizou o fim da noite... E que noite!
Acordar a alegria
«Vamos acordar! Vamos acordar!». Como um espelho reflector da noite anterior, o GDM (o primeiro dos três vencedores do Concurso de Bandas Novos Valores promovido pela Juventude Comunista Portuguesa que actuaram no Palco 25 de Abril) abriu com aquele apelo ao público os espectáculos de sábado.
O rap do GDM «acordou», tal como fez o hino para coro de Lopes-Graça no século passado, a expressão de sentimentos de revolta contra a injustiça social, os baixos salários, a exploração laboral.
Este «acordar» do protesto, do inconformismo, foi replicado pelas outras duas bandas provenientes do concurso da JCP: Jonhhy vs Betty (no sábado) e Celso (no domingo), com canções intensas e bem pensadas.
Paulo Flores, um mestre da gestão das dinâmicas de um espectáculo, «acordou» o público para a dança dos estilos africanos que com Yuri da Cunha, Prodígio e músicos de vários países africanos de língua oficial portuguesa trouxe para o fim da tarde de sábado na Atalaia.
Logo a seguir, Pretú «acordou» a multidão para uma ideia de espectáculo total, com poesia, música e dança; para a participação de Dino d’Santiago, Scúru Fitchádu, Tristany e Cachupa Psicadélica e para uma palavra de ordem transversal dita, firme, em palco: «a luta continua».
Paulo de Carvalho «acordou» a massa de gente que se sentou à sua frente para uma verdadeira revolução do seu repertório: anteriores fados que soaram a jazz, canções «ligeiras» com toque «funky», êxitos cantados a cappella, visitas a composições de outros autores, os duetos e as participações de Mafalda Sachetti e Marco Rodrigues. Com 74 anos de idade é possível um artista, um grande cantor e compositor, rejuvenescer?... É!
O HMB «acordou» a Festa para uma alegria contagiante, para a dança desinibida, para o riso, para a sensibilidade dos sentimentos mais autênticos. Lena D’Água, a convidada do grupo, teve ritmo e voz para ajudar a encher a noite.
O agradecimento que o grupo entendeu dar à Festa do Avante!, ao seu significado no panorama cultural português, às pessoas que a fizeram e a fazem, e ao apoio que esta organização deu em tempos de pandemia aos artistas portugueses, «acordou» uma ovação gloriosa do público, que exigiu todos os «encores» que a banda tinha capacidade para dar.
Em alguns intervalos, nos ecrãs de vídeo do Palco 25 de Abril, canções e fotografias «acordaram» a memória dos presentes para a música de Adriano Correia de Oliveira e para os 50 anos desse álbum fundamental que foi Cantigas do Maio, de José Afonso – no final desse vídeo, que passou três vezes ao longo dos dias da Festa, a plateia, invariavelmente, cantou em coro a «Grândola, Vila Morena».
Acordar as saudades
do ano que vem
Um dia alguém erguerá um monumento à Brigada Victor Jara pelo extraordinário, persistente e longo trabalho de valorização da música popular portuguesa. O grupo, porém, não parece querer viver de glórias passadas e no Palco 25 de Abril «acordou» no domingo um repertório animado que entusiasmou a assistência. Milhares de pessoas cantaram, por exemplo, o «Eu nasci à sexta-feira...» (a canção, açoriana, chama-se, na verdade, «Pezinho da Vila»), vibraram com a participação de Zeca Medeiros e aplaudiram as palavras ditas por Manuel Rocha sobre a defesa da cultura portuguesa e de uma sociedade de cariz socialista. Rocha «acordou» as hostes para o grande comício que se seguiu.
Um «sampler» de Chico Buarque a cantar Foi bonita a festa pá «acordou» a Atalaia para a parte final da 45.ª edição da Festa do Avante!. Os Linda Martini, com, o seu rock sofisticado, trouxeram essa ideia, demonstraram noutras músicas como conquistaram estatuto de banda de excelência e surpreenderam com uma versão de «Adeus Tristeza», um original de Fernando Tordo.
Tim convidou Teresa Salgueiro (que está em grande forma, ou seja, continua extraordinária) e criou especialmente para a Festa do Avante! um espectáculo memorável, com um conjunto de grandes canções, algumas delas verdadeiros símbolos geracionais. Mostrou ainda uma revelação na guitarra de fado: um rapaz chamado Gaspar Varela.
«Esta é a melhor festa do país», disse Tim e «acordou», assim, as saudades da Festa do ano que vem. Lá estaremos, claro, e bem acordados, como Lopes-Graça pedia no passado e como os tempos do presente nos exigem.