O teatro da Festa, a Festa do teatro
O Teatro está na Festa do Avante! desde o início. E o Avanteatro, enquanto espaço próprio para acolhimento das representações na Festa, marca nela uma presença ininterrupta há 35 anos, que se afirmou como uma das mais importantes iniciativas contemporâneas de divulgação da criação teatral portuguesa.
Este ano, o programa incluía Joana Brandão com «Coragem hoje, Abraços Amanhã», o Teatro Só com a sua terceira produção «Sombras», o «Fantasma das Melancias», espectáculo para a Infância pela Companhia de Teatro de Almada, uma animação de rua pelos Living Statues DJS, a Narrativensaio-AC com «Um Fio de Jogo» e o Teatro da Terra com «A Ida ao Teatro e Outros Textos de Karl Valentin».
Em «Coragem Hoje, Abraços Amanhã» a actriz está sentada a uma mesa, iluminada por um candeeiro; folheia as páginas de um dossier de arquivo, enquanto a banda sonora nomeia a lista interminável de mulheres que foram presas e torturadas. É delas e dos sofrimentos da monstruosa violência a que foram sujeitas ao longo de décadas, que a montagem fala através das suas recordações, cartas e testemunhos. O palco, nu e negro, clareia suavemente com os primeiros sinais do 25 de Abril, ainda ténues e contraditórios, percepcionados atrás das grades do cárcere por essas mulheres que não foram figuras de ficção, mas bem reais, na enorme dignidade da resistência de que foram capazes. Mulheres como Conceição Matos, presente na representação de sábado, a quem a actriz Joana Brandão, no final, dedicou, emocionada, um discreto mas comovente beijo de homenagem. Para que a memória não se apague!
«Sombras» é uma reflexão, numa dimensão pedagógica e redentora, sobre as emoções de uma vítima de violência doméstica. O Teatro Só «acredita num teatro de rua de intervenção social, reflexivo e humanista». O espectáculo resulta das experiências relatadas num longo trabalho de pesquisa envolvendo casas de acolhimento e entrevistas com psicólogos e vítimas. A actriz, em andas e sem palavras, executa, recorrendo à poesia visual e imagens de grande beleza plástica, acções teatrais que exprimem emoções, desconsolo e o desespero da vítima, numa abordagem intimista, desafiando tabus, exorcizando estigmas, visando a recuperação de si mesmo.
«Fantasma das Melancias», são três estórias com textos de três autores argentinos, pensados para um público infantil. Numa cenografia simples, eficaz e engenhosa (o que é uma enorme virtude), cita-se, no jogo dos actores, o teatro de fantoches, o burlesco do cinema mudo, o jogo circense de palhaços, gerando alegria e diversão e apelando à interacção com um público muito especial - as crianças. E apesar de na sinopse se afirmar que «não será preciso sair do lugar», a energia vital que emanava da cena, levou, quase no final, à invasão do palco por espectadores com uma média etária de 4 anos, motivados por assinalar as movimentações do Fantasma/Ladrão, o que só pode ser lido como um significativo elogio sobre a capacidade de comunicação posta em marcha.
A animação desenvolvida pelos Living Statues DJS tem como ponto de partida o encontro de duas personagens (Ary dos Santos e um capitão de Abril) que engendram uma performance com base em poemas de Ary, Alexandre O’Neill, Sophia e Paulo José Miranda, na qual se misturavam batidas rítmicas electrónicas com temas da Revolução de Outubro, Quilapayun, Piazzola, José Mário Branco e Zeca Afonso, pontuados com solos de flauta executados ao vivo. O resultado foi uma avassaladora e contagiante vontade de dança na plateia.
Já em «Um Fio de Jogo», com texto de Carlos Tê (conhecido letrista das músicas de Rui Veloso), um actor dá corpo e voz a 4 personagens – um treinador de futebol, um intelectual/adepto/comentador de televisão, um relator de futebol e um jogador brasileiro em fim de carreira. O futebol como fenómeno de massas, com os seus lugares comuns, pequenos mitos e também memórias, fascínio e alienação, das tardes de infância às conversas de café.
Com «A Ida ao Teatro e Outros Textos» de Karl Valentin, grande cómico bávaro, amigo de Brecht, estamos perante uma escrita que desencadeia um riso salutar, porque inteligente. Em pequenos diálogos que foram representados originalmente pelo dueto Valentin/ Liesl Karlstadt, o espectáculo conta com dois músicos e uma cantora que executam sobretudo a canção Youkali, de Kurt Weill, que vai marcando as mutações de cena. Devido ao humor corrosivo que denunciava contradições sociais, o nazismo censurou e proibiu o cabaret alemão. E daí, porque o ventre da Besta ainda está fecundo, a encenadora Maria João Luís, com resposta em coro dos espectadores, ter gritado no final «Viva a Liberdade! Abaixo o Fascismo!»
O Teatro, palco do Mundo, factor de emancipação, apto a divertir e ensinar, deu, mais uma vez, boa nota de si, como a diversidade destes espectáculos demonstrou.