Uma porta aberta para o palco
• Carlos Nabais
Apesar de se realizar desde 1985, o Avanteatro continua a surpreender pela ousadia de propor peças de teatro aos visitantes da Festa. O desafio é enorme para os actores mas também põe à prova a capacidade de concentração do público. No final todos saem recompensados, com um sorriso de satisfação estampado nos rostos. Valeu a pena, para o ano será ainda melhor.
Aposta ganha? Não há qualquer dúvida sobre isso, afirmaram ao nosso jornal Manuel Mendonça e Pedro Lago, dois dos responsáveis pela organização do Avanteatro.
Com uma oferta cultural cada vez mais rica e diversificada, condições para público e artistas melhoradas, o «teatro da festa» é um espaço de cultura e diversão que atrai milhares de pessoas durante os três dias do certame.
A programação rigorosa assume-se como uma montra do que melhor se faz Portugal nas artes de palco, trazendo companhias consagradas e espectáculos de sucesso. Mas este é também cada vez mais um dos poucos espaços de divulgação do trabalho de inúmeros criadores que não encontram lugar no «mercado» da cultura e vão votados ao abandono pelas políticas governamentais. Talentos desperdiçados...
Também por isso «vale a pena todo o esforço que é feito para realizar anualmente o Avanteatro», afirmou-nos Pedro Lago, notando que «o acesso à cultura está cada vez mais dificultado, não só por razões económicas das famílias, mas sobretudo pela falta de apoios que o governo devia dar às actividades culturais. Para muitos visitantes que vêm de regiões onde o teatro raramente chega, este espaço é a única oportunidade que têm para assistir a um espectáculo cénico». E por isso é tão procurado.
Para todas as idades
Este ano o palco abriu com a peça «O Príncipe de Spandau», um texto de Helder Costa encenado pelo Centro Dramático do Algarve, reposto especialmente para a Festa. O tema, uma reflexão sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, que se estendeu por quase toda a Europa na primeira metade do século, esteve presente em dois outros grandes espectáculos ali representados: «O Tinteiro», pelo Intervalo Grupo de Teatro, e «Obviamente Demito-o», pel’A Barraca (ver peças).
Embora cancelado devido à chuva de sexta-feira, o grupo PIA - Projecto de Intervenção Artística não defraudou a multidão que formou um círculo humano para assistir ao espectáculo de rua, «Comedor de Pecados», realizado nas noites de sábado e domingo.
Generosamente brindado com três peças para a infância e cinco representações, o público mais jovem assistiu logo na manhã de sábado ao bem conseguido espectáculo «Pedro e o Lobo», pelo Teatro Extremo. No domingo, os robertos do Nariz - Grupo de Teatro com o espectáculo «O Lorpa» encantaram a pequenada que foi logo de seguida para a tenda montada ali ao lado pel’O Bando, onde puderam seguir uma criativa encenação do conto popular português «Grão de Milho».
Inscrevendo-se também na tradição popular, o GEFAC, Grupo Etnográfico da Academia de Coimbra, levou à festa «A comédia do Verdadeiro Santo António Que Livrou seu Pai da Morte em Lisboa».
Cinema, dança, música
A introdução de outras artes de palco para além do teatro, iniciada há vários anos pela organização, veio enriquecer a programação e garantir uma animação quase permanente do Avanteatro. O bar transformou-se num café-concerto e o seu pequeno palco passou a acolher todos os anos músicos de grande qualidade, aspecto que ressaltou com particular evidência nesta edição. Logo na sexta-feira, quando o foyer forneceu confortável abrigo a inúmeros visitantes que fugiam da chuva, ali actuou o Quarteto Take 5, composto por quatro talentosos clarinetistas, recém formados na Escola Superior de Música de Lisboa.
Entrando já na madrugada de domingo, Mariana Abrunheiro (que vimos também no papel de Arajaryr, na peça «Obviamente Demito-o»), acompanhada ao piano por Filipe Raposo, cantou a mulher tendo como mote o nome de Maria.
Ainda na música, a espantosa formação de António Palma (piano, baixo, bateria, tuba e voz), constituída especialmente para actuar no Avanteatro, empolgou o público com conhecidos temas de jazz e rock e de musica brasileira, recriados na surpreendente voz de Marta Plantier.
Ali actuaram também o Trio Sebastião Antunes, vocalista do grupo Quadrilha, e a encerrar o espaço, a divertida banda de sopros e percussões «O Menino é Lindo».
A dança esteve representada pelo espectáculo de Filipa Francisco, «Íman», que resultou de um projecto cultural realizado no Bairro da Cova da Moura, sobre o qual foi projectado um vídeo documentário no final da coreografia.
Outro tema de grande importância social, a luta contra a privatização da água, foi abordado no filme documentário, A Sede. Este trabalho de Alan Snitow e Deborah Kaufman, mostra casos de corrupção política nos EUA em torno da tentativa de controlo da água por parte de corporações e relata a criatividade das comunidades locais para preservar o direito universal de acesso a este bem essencial e defender o seu controlo público.
Melhorar sempre
Já a pensar na edição do próximo ano, Pedro Lago e Manuel Mendonça sonham com novas transformações no Avanteatro, designadamente na zona do bar e avaliam as possibilidades de construir um palco fixo. «Este ano instalámos contentores para servirem de camarins aos artistas. Contávamos também ter já um novo palco, mas não foi possível. Para o ano iremos realizar esse projecto e continuaremos a melhorar as condições para público e actores, procurando aumentar a polivalência deste espaço e responder à crescente afluência de visitantes».
O Tinteiro
Quase meio século depois
Estreada há 47 anos pelo então recém-criado Teatro Moderno de Lisboa (TML), a peça O Tinteiro foi qualificada na altura como «uma pedrada no charco». O texto, da autoria do espanhol Carlos Muñiz, conta-nos a história de um empregado de escritório que gostava da Primavera e trazia flores para pôr na sua secretária, à revelia dos absurdos e repressivos regulamentos da empresa. A rebeldia do protagonista, alvo da denúncia dos colegas subservientes e de injustas sanções e perseguições por parte dos superiores, foi entendida na época como uma crítica aberta ao opressivo regime salazarista.
Levada ao Avanteatro pelo grupo Intervalo, a peça O Tinteiro cativou e surpreendeu, não só por nos recordar a ousadia e coragem daqueles que a representaram em plena noite fascista, mas também pela actualidade das questões que levanta.
Durante quase um ano, entre Setembro de 1961 e Julho de 1962, milhares de pessoas viram o espectáculo que ainda hoje é evocado como um grande acontecimento social. O estrondoso êxito da peça, que marcou igualmente a curta existência do revolucionário TML, foi recordado por Armando Caldas, ele próprio um dos fundadores da primeira companhia de teatro independente do país. Ao público da festa, o encenador lembrou que os 1100 lugares do vasto cinema Império esgotavam invariavelmente nas representações do TML que se realizavam às 18,30 horas nos dias de semana e às 11 da manhã aos domingos. A popularidade granjeada pela sociedade de artistas, em torno da qual surgiu um núcleo de amigos com mais de 20 mil membros, não tardou a assustar o regime que lhe traçou o destino proibindo-a de trabalhar.
Apesar da sua curta vida entre 1961-1965, o TML deixou uma marca indelével na história do teatro português, sendo percursor de diversos grupos independentes que a partir daí defrontaram a censura, ficando para sempre associados à história da resistência e do combate ao fascismo.
Obviamente demito-o!
O descrédito do salazarismo
A frase de Humberto Delgado, então candidato à Presidência da República, foi a resposta dada a um jornalista que lhe perguntou: «Qual a sua atitude para com o Sr. Presidente do Conselho se for eleito?».
«Obviamente demito-o» soou como um prenúncio do derrube ditadura fascista e valeu ao seu autor o cognome de «General sem Medo», numa histórica campanha eleitoral em participou ao lado de Arlindo Vicente.
Mas, após a fraude das eleições de 1958, cujo 50.º aniversário se assinalou na Festa do Avante!, seria preciso lutar durante mais 16 anos até à Revolução de Abril para pôr fim a 48 anos de fascismo e abrir as portas à liberdade e democracia.
A peça de A Barraca, com texto e encenação de Helder Costa, apresentou-nos um general enérgico, romântico, impulsivo e empolgado, mas recordou-nos também vários outros acontecimentos que marcaram aqueles anos e que tiveram uma importância crucial para desestabilização do regime e reforço da resistência antifascista.
O desvio do paquete Santa Maria, a revolta de Beja ou a espectacular fuga de Peniche de Álvaro Cunhal com outros destacados dirigentes comunistas são episódios históricos evocados em várias cenas da peça que expõe ainda a corrupção e degradação moral das cliques fascistas, as atrozes torturas da PIDE, a guerra colonial, a emigração em massa, a exploração, a opressão e a miséria do povo português.
De pé, ovacionando o excelente trabalho dos actores, o público, que enchia por completo o Avanteatro, encerrou a programação deste ano entoando o Canta Camarada Canta, acompanhado pelos sopros e percussões da banda «O Menino É lindo», que irrompeu em palco no final da peça.
Apesar de se realizar desde 1985, o Avanteatro continua a surpreender pela ousadia de propor peças de teatro aos visitantes da Festa. O desafio é enorme para os actores mas também põe à prova a capacidade de concentração do público. No final todos saem recompensados, com um sorriso de satisfação estampado nos rostos. Valeu a pena, para o ano será ainda melhor.
Aposta ganha? Não há qualquer dúvida sobre isso, afirmaram ao nosso jornal Manuel Mendonça e Pedro Lago, dois dos responsáveis pela organização do Avanteatro.
Com uma oferta cultural cada vez mais rica e diversificada, condições para público e artistas melhoradas, o «teatro da festa» é um espaço de cultura e diversão que atrai milhares de pessoas durante os três dias do certame.
A programação rigorosa assume-se como uma montra do que melhor se faz Portugal nas artes de palco, trazendo companhias consagradas e espectáculos de sucesso. Mas este é também cada vez mais um dos poucos espaços de divulgação do trabalho de inúmeros criadores que não encontram lugar no «mercado» da cultura e vão votados ao abandono pelas políticas governamentais. Talentos desperdiçados...
Também por isso «vale a pena todo o esforço que é feito para realizar anualmente o Avanteatro», afirmou-nos Pedro Lago, notando que «o acesso à cultura está cada vez mais dificultado, não só por razões económicas das famílias, mas sobretudo pela falta de apoios que o governo devia dar às actividades culturais. Para muitos visitantes que vêm de regiões onde o teatro raramente chega, este espaço é a única oportunidade que têm para assistir a um espectáculo cénico». E por isso é tão procurado.
Para todas as idades
Este ano o palco abriu com a peça «O Príncipe de Spandau», um texto de Helder Costa encenado pelo Centro Dramático do Algarve, reposto especialmente para a Festa. O tema, uma reflexão sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, que se estendeu por quase toda a Europa na primeira metade do século, esteve presente em dois outros grandes espectáculos ali representados: «O Tinteiro», pelo Intervalo Grupo de Teatro, e «Obviamente Demito-o», pel’A Barraca (ver peças).
Embora cancelado devido à chuva de sexta-feira, o grupo PIA - Projecto de Intervenção Artística não defraudou a multidão que formou um círculo humano para assistir ao espectáculo de rua, «Comedor de Pecados», realizado nas noites de sábado e domingo.
Generosamente brindado com três peças para a infância e cinco representações, o público mais jovem assistiu logo na manhã de sábado ao bem conseguido espectáculo «Pedro e o Lobo», pelo Teatro Extremo. No domingo, os robertos do Nariz - Grupo de Teatro com o espectáculo «O Lorpa» encantaram a pequenada que foi logo de seguida para a tenda montada ali ao lado pel’O Bando, onde puderam seguir uma criativa encenação do conto popular português «Grão de Milho».
Inscrevendo-se também na tradição popular, o GEFAC, Grupo Etnográfico da Academia de Coimbra, levou à festa «A comédia do Verdadeiro Santo António Que Livrou seu Pai da Morte em Lisboa».
Cinema, dança, música
A introdução de outras artes de palco para além do teatro, iniciada há vários anos pela organização, veio enriquecer a programação e garantir uma animação quase permanente do Avanteatro. O bar transformou-se num café-concerto e o seu pequeno palco passou a acolher todos os anos músicos de grande qualidade, aspecto que ressaltou com particular evidência nesta edição. Logo na sexta-feira, quando o foyer forneceu confortável abrigo a inúmeros visitantes que fugiam da chuva, ali actuou o Quarteto Take 5, composto por quatro talentosos clarinetistas, recém formados na Escola Superior de Música de Lisboa.
Entrando já na madrugada de domingo, Mariana Abrunheiro (que vimos também no papel de Arajaryr, na peça «Obviamente Demito-o»), acompanhada ao piano por Filipe Raposo, cantou a mulher tendo como mote o nome de Maria.
Ainda na música, a espantosa formação de António Palma (piano, baixo, bateria, tuba e voz), constituída especialmente para actuar no Avanteatro, empolgou o público com conhecidos temas de jazz e rock e de musica brasileira, recriados na surpreendente voz de Marta Plantier.
Ali actuaram também o Trio Sebastião Antunes, vocalista do grupo Quadrilha, e a encerrar o espaço, a divertida banda de sopros e percussões «O Menino é Lindo».
A dança esteve representada pelo espectáculo de Filipa Francisco, «Íman», que resultou de um projecto cultural realizado no Bairro da Cova da Moura, sobre o qual foi projectado um vídeo documentário no final da coreografia.
Outro tema de grande importância social, a luta contra a privatização da água, foi abordado no filme documentário, A Sede. Este trabalho de Alan Snitow e Deborah Kaufman, mostra casos de corrupção política nos EUA em torno da tentativa de controlo da água por parte de corporações e relata a criatividade das comunidades locais para preservar o direito universal de acesso a este bem essencial e defender o seu controlo público.
Melhorar sempre
Já a pensar na edição do próximo ano, Pedro Lago e Manuel Mendonça sonham com novas transformações no Avanteatro, designadamente na zona do bar e avaliam as possibilidades de construir um palco fixo. «Este ano instalámos contentores para servirem de camarins aos artistas. Contávamos também ter já um novo palco, mas não foi possível. Para o ano iremos realizar esse projecto e continuaremos a melhorar as condições para público e actores, procurando aumentar a polivalência deste espaço e responder à crescente afluência de visitantes».
O Tinteiro
Quase meio século depois
Estreada há 47 anos pelo então recém-criado Teatro Moderno de Lisboa (TML), a peça O Tinteiro foi qualificada na altura como «uma pedrada no charco». O texto, da autoria do espanhol Carlos Muñiz, conta-nos a história de um empregado de escritório que gostava da Primavera e trazia flores para pôr na sua secretária, à revelia dos absurdos e repressivos regulamentos da empresa. A rebeldia do protagonista, alvo da denúncia dos colegas subservientes e de injustas sanções e perseguições por parte dos superiores, foi entendida na época como uma crítica aberta ao opressivo regime salazarista.
Levada ao Avanteatro pelo grupo Intervalo, a peça O Tinteiro cativou e surpreendeu, não só por nos recordar a ousadia e coragem daqueles que a representaram em plena noite fascista, mas também pela actualidade das questões que levanta.
Durante quase um ano, entre Setembro de 1961 e Julho de 1962, milhares de pessoas viram o espectáculo que ainda hoje é evocado como um grande acontecimento social. O estrondoso êxito da peça, que marcou igualmente a curta existência do revolucionário TML, foi recordado por Armando Caldas, ele próprio um dos fundadores da primeira companhia de teatro independente do país. Ao público da festa, o encenador lembrou que os 1100 lugares do vasto cinema Império esgotavam invariavelmente nas representações do TML que se realizavam às 18,30 horas nos dias de semana e às 11 da manhã aos domingos. A popularidade granjeada pela sociedade de artistas, em torno da qual surgiu um núcleo de amigos com mais de 20 mil membros, não tardou a assustar o regime que lhe traçou o destino proibindo-a de trabalhar.
Apesar da sua curta vida entre 1961-1965, o TML deixou uma marca indelével na história do teatro português, sendo percursor de diversos grupos independentes que a partir daí defrontaram a censura, ficando para sempre associados à história da resistência e do combate ao fascismo.
Obviamente demito-o!
O descrédito do salazarismo
A frase de Humberto Delgado, então candidato à Presidência da República, foi a resposta dada a um jornalista que lhe perguntou: «Qual a sua atitude para com o Sr. Presidente do Conselho se for eleito?».
«Obviamente demito-o» soou como um prenúncio do derrube ditadura fascista e valeu ao seu autor o cognome de «General sem Medo», numa histórica campanha eleitoral em participou ao lado de Arlindo Vicente.
Mas, após a fraude das eleições de 1958, cujo 50.º aniversário se assinalou na Festa do Avante!, seria preciso lutar durante mais 16 anos até à Revolução de Abril para pôr fim a 48 anos de fascismo e abrir as portas à liberdade e democracia.
A peça de A Barraca, com texto e encenação de Helder Costa, apresentou-nos um general enérgico, romântico, impulsivo e empolgado, mas recordou-nos também vários outros acontecimentos que marcaram aqueles anos e que tiveram uma importância crucial para desestabilização do regime e reforço da resistência antifascista.
O desvio do paquete Santa Maria, a revolta de Beja ou a espectacular fuga de Peniche de Álvaro Cunhal com outros destacados dirigentes comunistas são episódios históricos evocados em várias cenas da peça que expõe ainda a corrupção e degradação moral das cliques fascistas, as atrozes torturas da PIDE, a guerra colonial, a emigração em massa, a exploração, a opressão e a miséria do povo português.
De pé, ovacionando o excelente trabalho dos actores, o público, que enchia por completo o Avanteatro, encerrou a programação deste ano entoando o Canta Camarada Canta, acompanhado pelos sopros e percussões da banda «O Menino É lindo», que irrompeu em palco no final da peça.