Auditório 1.º de Maio

Sonoridades de resistência

Miguel Inácio e Pedro Fernandes

Durante três dias, os sons trazidos ao Auditório 1.º de Maio proporcionaram emoções e sentimentos únicos. Cantadas foram palavras de ordem que marcam a realidade social e política de todo um mundo. Destaque para as homenagens a Adriano Correia de Oliveira e a José Saramago, num palco onde as crianças tiveram um momento especial.

A programação arrancou com fado, património cultural imaterial que traduz as emoções do povo português, como aconteceu com Carlos Leitão. «Fado cativo» e «Loucura» foram temas de um repertório mais tradicional, entrosados com o recente, divertido e festivo «Um quarto para as duas». Confirma-se assim que «Não é fadista quem quer».

Prosseguiu com Jonas,num concerto intimistaacompanhado por bailarinos, porque o fado também pode ser dançado de forma enérgica. Os temas – obras de arte que retratam a actualidade – contam-nos histórias, como «Jacarandá» ou «Provérbio ao contrário», que às tantas refere: «Mas eu sou quem tudo quer, tudo sonha e alcança».

Os belgas Rawhideforam «combustível» para uma noite única, com os sons frenéticos do bluegrass, proporcionados pelo banjo, bandolim, violino, dobro, guitarra e baixo, ora em solos, ora em improvisos. Além de originais como «Long gone», oferendaram uma versão de «Grândola Vila Morena». O final contou com André Dal, apresentado como o melhor banjolista português.

A noite terminou em grande com os Lefty, que presentearam um auditório cheio com um repertório em português estimulado pelo punk e o new wave. À qualidade da actuação energética juntou-se a oportunidade de ouvir os temas originais e autobiográficos da vocalista Leonor Andrade.

 

Homenagens marcantes
No sábado o palco abriu com um espectáculo dedicado a Adriano Correia de Oliveira, que este ano completaria 80 anos de vida, a cargo do Grupo Canto D´Aqui e da Orquestra Filarmónica de Braga. A estes juntou-se a cantora galega Uxía com «Para que quero eu olhos» e Sebastião Antunes com «Canção do Linho». A homenagem terminou com «Canção da Beira Baixa». Também não faltou o «Hino do MFA» e foram lembrados Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto e Paulo de Carvalho, com trovas que continuam a marcar gerações.

Paula Oliveira apresentou o projecto «Flores de Saramago» a uma audiência incrível, com composições a partir de poemas do Prémio Nobel da Literatura português, que este ano completaria 100 anos. «Ergo uma rosa», «Romeu e Julieta», «Circo» e «Adivinha» foram, entre outros, temas magistralmente interpretados pela cantora de jazz.

Os sons de todo o mundo prosseguiram com Domenico Lancellotti e Nina Miranda, que nos fizeram embarcar numa viagem encantadora pelos sons da floresta e das raízes da música popular brasileira e rítmica electrónica, como aconteceu em «Vai a serpente».

O fado e o jazz voltaram com Júlio Resende. Mais do que improvável, ali aconteceu um dueto singular entre o pianista e a voz [reproduzida] de Amália Rodrigues, no tema «Medo», que arrepiou toda uma plateia. O piano conferiu um dramatismo acrescido à genialidade da diva do fado. Outros fados como «Blues» ou «Cyborgue» foram acompanhados por guitarra portuguesa, contra-baixo e bateria. O repertório encerrou o tema «Vira mais cinco», uma homenagem bonita a Zeca Afonso.

A world music e o jazz prosseguiram com Carmen Souza, uma experiência diferenciadora. Apesar das raízes cabo-verdianas, a versatilidade da cantora atravessou inúmeras geografias, destacando-se «The Jody Grind», «Afri ka» ou uma outra versão de «Os Bravos», com ritmos quentes de Cuba.

À Rave Avante! foram muitos os que se juntaram e poucos os que a abandonaram. A recepção do público à prestação das três Djs Violet, Yazzus e Renata foi prova de que o house e o techno, estreias recentes na Festa, vieram para ficar. Numa noite de frenesim e de dança, um dos momentos altos surgiu com um remixde «Grândola Vila Morena».

 

Discursos poéticos
No domingo, o primeiro concerto foi inteiramente dedicado às crianças, com Mão Verde II, projecto ecologista abraçado por Capicua. Entre outros, «Panapanã», «O pequeno ditador», «Plástico não é plâncton», «Guacamole» e «Marcha da Greta» foram cantados e dançados por crianças e adultos.

Como não há Festa como aquela, a rapper — que actuou em 2020 no palco 25 de Abril — pediu uma salva de palmas para todos os trabalhadores da Cultura, que foi inteiramente e entusiasticamente correspondido.

Com a grande voz de Paulo Bragança voltou-se a celebrar Adriano Correia de Oliveira, agora com a presença de familiares do cantautor de intervenção [falecido a 16 de Outubro de 1982] e de Jorge Guedes, do Centro Artístico Cultural e Desportivo Adriano Correia de Oliveira. O fadista iniciou o momento à capela com «As mãos» e prosseguiu – acompanhado por piano e guitarra portuguesa – com «Maria dos olhos tristes», «Canção de Fornos», «A noite dos poetas», «Lira», «Para que quero eu olhos», «Rosinha» e «Erguem-se muros». Na sua actuação interpretou os temas «Soldado», João Aguardela/Sitiados, «Remar, remar», dos Xutos & Pontapés, «Maldição», cantada por Amália Rodrigues. Paulo Bragança, sensibilizado com o carinho recebido, terminou com «Trova do vento que passa», com o público no lugar do cantor: «Mesmo na noite mais triste; em tempo de servidão; há sempre alguém que resiste; há sempre alguém que diz não».

Com a noite prestes a instalar-se, seguiu-se o «comício»de Bia Ferreira, nome emergente da música brasileira. Apresentou discursos poéticos e composições potentes, gritos de alerta e chamadas de atenção para causas que promovem a igualdade racial e de género, como «Não precisa ser Amélia», «De dentro do AP» e «Levanta a bandeira do amor» com a cantora a criticar aqueles que tentam «deturpar» aquilo que é a Festa do Avante!. «Cota não é esmola» levou a outra canção emblemática de luta: «O povo unido jamais será vencido».

Groovy, com muito soul, dança, energia e uma poderosa voz, Marta Ren encerrou a última noite daquele palco. Acompanhada pela sua banda, vestida a rigor para a ocasião, a artista portuense assaltou o ânimo do público e deu espaço à solidariedade com a salva de palmas que pediu para Dino D’Santiago, a actuar, ao mesmo tempo, no Palco 25 de Abril.

 



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