A Festa do teatro, o tempo das actrizes
Um palco erguido entre a sombra de pinheiros mansos. O bulício da Festa, esta nossa e única Festa que tantos engulhos tem causado aos que, saudosos de um passado de perseguições e medo, contra ela disparam armas de ódio soez e vil, contra a Cultura, o mundo novo, e possível, que se ergue no espaço belíssimo da Atalaia, nessa baía de Amora/Seixal, entre o casario e o Tejo imenso e brando que o rodeia e emoldura. A música, o teatro, os livros, o desporto, a gastronomia e a política, sim, a dignidade de pensar a coisa pública, acto dos que pensam o País, que sobre ele debatem e o querem justo, livre, fraterno, mais humano e em PAZ.
Um palco erguido ao ar-livre, onde aconteceu durante três dias essa coisa mágica e efémera, feita de «instantes irrepetíveis», a que chamamos Teatro, pelo qual a poesia passou na sua melhor forma, entre o canto e as palavras ditas, as palavras na sua mais pura essência, num espectáculo pleno de sentidos, que nos interrogava sobre se Bebemos Palavras a Mais?!
Espaço de encontro, de reflexão, de exaltação da palavra, dos gestos e das vozes dos actores, sobretudo das actrizes, ao caso. Como se na Grécia, com um Aristóteles atento aos sortilégios, às elegias, aos rituais, ao drama que ecoa dos versos, das falas, dessa constelação lógica de astros, vida, desejo, poder, amor e morte, que o Teatro, como nenhuma outra Arte, sintetiza e nos dá a ver, a partir de elementos básicos, mesmo quando o simbólico nele se encena em ressonância e esplendor. Basta-lhe um palco, ou uma tenda, um estrado amplo ou exíguo, os corpos e o movimento dos actores, as suas vozes projectadas sobre a plateia, a música, a luz, um cenário, algumas imagens. Todas as artes conjugadas para que a magia aconteça e nos toque. Esta edição do Avanteatro teve uma particularidade, nem sempre possível de conjugar: o grande espaço da representação foi concedido às actrizes: Paula Só, Patrícia Couveiro, Suzana Branco, Maria João Luís, Luísa Pinto e Cristina Bacelar, Teresa Gafeira (como autora e encenadora) e Maria do Céu Guerra. Assim, o grande teatro esteve presente, uma vez mais, na Festa maior da Cultura, aberta a todos – a nossa Festa!
Latoaria/Candonga – Associação – Corpo Suspenso.
A Guerra Colonial ainda como matéria de perplexidade, feridas ainda por sarar, memórias que permanecem a doer nos retratos, nos aerogramas, nas histórias que ficaram tolhidas na voz, num corpo que tarda a encontrar o rumo dos passos, que ficou suspenso nesse clamor de vozes, de gritos, dos sons das armas no labirinto das matas angolanas, nesse exercício do terror, o sangue que não estanca. Patrícia Couveiro deu corpo, texto e voz a estas memórias de Rita Neves, e fê-lo com uma tocante serenidade, com inteligente contenção, mesmo quando a dor explode em gritos de revolta.
Três espectáculos para um público futuro
Teatro O Bando – Ti Coragem e Joana – Um espectáculo a sonhar o Mar.
Com encenações de João Brites, O Bando esteve presente com dois notáveis pretextos teatrais. O primeiro, Ti Coragem, texto construído a partir de um conto tradicional galego, cuja interpretação valeu a Paula Só, em 1986, o prémio de melhor actriz. Numa pequena tenda, onde apenas cabiam 35 espectadores, Paula Só encarna Ti Miséria, velhota que vai amassando os seus bolinhós e engendra forma dos larápios não conseguirem assaltar a sua nogueira e com tal arte o faz que a própria morte, que a queria ir buscar, nela se enredará. A capacidade interpretativa de Paula Só, a magia que evola daquele pequeníssimo palco onde o seu corpo e voz nos dizem a alegria de estar vivo, não se perderam ao longo de 36 anos. Que grande actriz.
Outro projecto de O Bando, foi Joana – Um Espectáculo a Sonhar o Mar, construído a partir de textos de Sophia de Mello Breyner. Joana quer ser, como o avô, capitão de um navio, correr mundo, conhecer outros lugares, outras gentes. A partir de ferramentas usadas à vista de todos, os espectadores podem participar nessa viagem, navegar, sentir o cheiro do mar, do convés, imaginar os portos, os lugares nomeados pela pena encantatória de Sophia e pelo corpo e voz de Suzana Branco.
Companhia de Teatro de Almada, Ando a Sonhar Com Beethoven, de Teresa Gafeira
O Jorge gosta de ter os brinquedos arrumados, o computador onde exercita a sua vocação para as contas certas. E dorme tranquilo, ou tenta, dado que um homem azougado e galhofeiro, lhe entra pelo quarto, desarruma tudo e lhe enche o quarto de sons belíssimos, de um tal Beethoven. O quarto resplandece e os sonhos do Jorge são invadidos por esse desarranjo sonoro. Espectáculo de Teresa Gafeira pleno de magia, movimento e riso. Modo inteligente de levar a grande música aos mais novos.
A Última Refeição, de António Cabrita
Maria João Luís é, sabemo-lo, uma das nossas mais estimulantes actrizes e a única, arrisco dizê-lo, capaz de dar ao complexo e belo texto de António Cabrita, a dimensão lúdica, febril e humana que o autor criou em torno de um esquivo sacana genial chamado Bertolt Brech. O texto diz-nos do relacionamento de B.B. com as mulheres, com os filhos, com o teatro, dessa capacidade única de questionar um mundo violento em tempo de chacais. Maria João Luís não só ergue uma poderosa e credível Helene Weigel, como dela se distancia utilizando, de modo inteligente e subtil, o método de Bert. Esta Última Refeição, frango na púcara à moda de Mãe Coragem, foi-nos servida com requinte por três grandes nomes da nossa cultura contemporânea, António Cabrita, Maria João Luís e António Pires, em mais uma das noites memoráveis do Avanteatro.
Teatro A Barraca – Elogio da Loucura, de Hélder Mateus da Costa e Maria do Céu Guerra, a partir de Erasmo de Roterdão
A Barraca, um dos nossos mais consequentes grupos de teatro, que tem privilegiado, ao longo de décadas de labor e luta difícil em País pouco afeito às exigências da Cultura, os dramaturgos portugueses, a começar por Hélder Costa, o dramaturgo residente da Companhia, trouxe ao Avanteatro a sua última e, uma vez mais, brilhante produção: Elogio da Loucura, versão livre do texto clássico de Erasmo. Tivemos, deste modo, um espectáculo que se interroga sobre «o que é a loucura?», que faz um rasgado elogio a Lucrécia Bórgia, à Liberdade, e ao direito a sermos felizes.
Mais um elenco de grande nível, tendo à frente esse nome incontornável do nossos teatro, Maria do Céus Guerra. Não sei de melhor forma de encerrar esta edição do Avanteatro.
Para o ano há mais.