Onde todos são Avante!
Ao início da tarde de sábado o Palco 25 de Abril ainda estava em silêncio. Melhor dito, quase-silêncio. Porque à grande praça verde chegava já o rumor da Festa. A sonoridade permanecente era ainda a do concerto de homenagem a José Saramago – aqui o relato de um Beethoven reencontrado, ali o espanto de ter ouvido um cravo pela primeira vez, além a constatação de que «afinal, o bandolim que toco na tuna também dá para tocar Mozart».
As máquinas de fumo já tinham começado a enevoar o Palco quando soou a Carvalhesa. Correram jovens e velhos para o centro do relvado, ali onde os decibéis se fundem com o coração. Logo a seguir, o DJ de Another Level Squad lançou nas colunas um tecido sonoro denso. Acordes sintetizados encontraram a pulsação do baixo samplado para darem suporte à entrada de Seaan Tiller e seus companheiros de vocalizações, entre a palavra percutida, que é o coração do hip-hop, e o instrumento musical que é boca e membrana de microfone: o beat box.
Scúru Fitchádu começou por dar o fonograma de um canto tradicional de mulheres, logo abraçado pelos sons da electrónica em parceria com o Ferro (barra de metal tocada com uma faca), o baixo frenético ombreando com o cavaquinho, a voz poderosa de Marcus Veiga em diálogo com as cordas de Henrique Silva dos Acácia Maior. E a Gaita (a concertina) espalhando o Funaná pelo chão da Atalaia. Disse do «grande orgulho estar nesta Festa Grandiosa!».
«Não dá p’ra parar», atirou Pongo ao público da Festa. Atrás da cantora, num plano levantado, o DJ dirigia a orquestra samplada para a voz da solista do concerto que foi baile também. Ao seu lado, dois dançarinos exibem laboriosos passos do Kuduru que – ali bem se viu – é o contrário do passo pré-fabricado e repetitivo dos ambientes da indústria do entretenimento.
Na névoa iluminada do palco, duas guitarras, uma em frente da outra, instalaram no espaço uma malha pendular. Era o prelúdio de No Fim Era o Frio, de Mão Morta, uma quase-cantata de antecipação (de alerta) de um tempo demencial. O Palco 25 de Abril era agora o lugar da reflexão sobre os caminhos da Civilização. No final, poucas palavras: «somos Mão Morta». Sempre presentes, «mesmo quando nos desenham zês na lapela» - todo um manifesto, afinal.
Emílio Moret trouxe à Festa a elegância bailante do Son cubano. Voz antiga, fez-se acompanhar de mãos mais novas – bendita terra em que o sistema educativo revolucionário percebeu a riqueza da cultura popular e fez dela (que já era arte) educação. A meio do espectáculo Vitorino tomou conta da função. O público reconheceu Desde el día en que te vi e cantou a plenos pulmões. O cantor apelou à dança generalizada, e a as gentes corresponderam: uns com reconhecida ciência, outros como o corpo lhes deixava.
A música de Les Frères Smith é a do mundo inteiro: afrobeat, jazz hipnótico, Groove e muitos sons da África que vão de Conakry ao Gana, dos Camarões à Nigéria. E, na sonoridade que replica elementos da chamada música pop, uma flauta travessa tradicional, encheu a paleta musical da Festa do Avante! dos timbres que o povo inventou.
À meia-noite e meia hora era muita a vontade de contrariar a frescura da noite. E Fogo Fogo resolveu fazer jus ao nome com que responde: «porque não há festa como esta estamos aqui para fazer a Festa convosco!». Música enérgica, cimento de comunidade, lugar de encontro de pessoas e de gerações. Por isso fez tanto sentido a presença de Dany Silva, um artista cuja voz é porta-voz de uma cultura musical e poética sublime.
Fazer a diferença
O domingo começou com Terminal, outra das bandas vencedoras do Concurso Novos Valores, promovido pela JCP. Canções bem construídas, num rock vigoroso e juvenil. O público foi ao encontro daquela música mobilizadora. «É um prazer estar aqui convosco! Pela cultura, pela música, pela amizade.»
Acenderam-se os coros e as percussões nas cantigas que Ribombar ofereceu ao público. Trancanholas, adufes, cordas, caixas, bombos, genebrês, reco-recos, brinquinhos, ferrinhos, matracas, mais paus diversos, cordas esticadas e instrumentos do tempo da electricidade. Música de Ribombar e do povo, a que se juntou a «maravilhosa Uxía» (cantando quadras alusivas à Festa). Festa total antes do Comício – no Palco e em redor.
Carminho enche o palco com só projectar a voz – é sabido. Mas tal qualidade tem ainda mais relevância num palco que fica numa cidade de muitos sons. Ali, a construção do «silêncio, que se vai cantar o Fado» é milagre de que só os grandes são capazes, mais ainda perante um público de muitos e diferentes gostares.
Quem, em seu nome, oferece o palco nu aos passos iniciais de Grândola, Vila Morena, e ali se acrescenta ao coro de milhares de vozes da Festa, já disse o primordial sem ter proferido uma só palavra. No concerto de Dino D’Santiago estava tudo ligado: a voz poderosa na boa música, a inscrição (na t-shirt) «nossos corpos também são pátria», o calhau girando sobre si no fundo do palco – que tanto podia ser asteróide à deriva no espaço como uma ilha suspensa no oceano, ou o artista orbitando nas voltas retorcidas da Civilização.
Dino D’Santiago não dispensou a música e a poesia (como sempre), nem dispensou as palavras (como particularmente ali); «quando olhei para dentro, olhei para a História e olhei para quem faz a diferença, decidi que não iria à Festa do Avante! - eu sou Avante!». Somos. Para o ano que vem outra vez.