Escrever para o amigo que virá
A poesia, o romance, o ensaio, o testemunho histórico, estiveram em destaque em mais uma edição da Festa do Livro, diria que das mais concorridas de quantas se realizaram ao longo dos 42 anos da nossa Festa. Estiveram presentes no Auditório, para apresentar novos livros ou para falar da respectiva obra, na pluralidade de géneros literários e de abordagens estéticas, alguns nomes importantes da nossa cultura.
Dessa jornada de três dias pelo prazer da escrita, pela magia da sua força interventora, pelos sinais que muitos destes textos transportam para o devir, tentarei dar-vos, de forma sucinta, a notícia possível e as frases mais marcantes dos discursos dos que foram, nestes dias da Festa da Palavra, os seus protagonistas.
A Candidatura de Arlindo Vicente às «eleições» de 1952, de João Alves Falcato
Livro sobre as «eleições» presidenciais de 1952, que assinala os 60 anos em que a Oposição Democrática se uniu em torno da candidatura de Humberto Delgado e o papel determinante que a candidatura de Arlindo Vicente, e dos seus mais directos apoiantes, teve na unidade e mobilização popular contra o fascismo.
Domingos Abrantes: o livro que Falcato nos deixou é um livro da maior importância política e histórica, dado que este texto repõe a verdade dos factos e denuncia as versões revisionistas em torno da candidatura de Arlindo Vicente.
Os Dias Desarmados, de Domingos Lobo e Convocatória, de Miguel Tiago
foram apresentados pelos respectivos autores, cabendo a cada um deles falar da obra do outro. Domingos Lobo: este livro de Miguel Tiago não esconde ao que vem, assume claramente a ideologia que lhe está na génese.
Miguel Tiago: há nestes poemas de Domingos Lobo, uma apuradíssima estética aliada a um conteúdo de combate. O jogral Manuel Diogo leu poemas de ambos os livros.
Mia Couto – A obra do autor moçambicano foi apresentada, de modo informal e descontraído pelo seu editor Zeferino Coelho, numa das sessões mais participadas desta jornada literária. O editor começou por se referir ao livro Raízes da Expansão, de António Borges Coelho, para introduzir no discurso a questão colonial e os heróis que o fascismo concebeu para criar a mística expansionista. Em resposta, Mia Couto disse que uma nação precisa de construir heróis, mas esses heróis são, quase sempre, erigidos em torno de uma mentira. Mouzinho e Gungunhana enfermam dessa narrativa, e, Zeferino Coelho, num aparte, Mouzinho até exigia chá para combater Gungunhana: ”Sem chá, não o combato”.
Curar o Mundo – O acesso ao tratamento médico no nosso tempo, de Carlos Seabra
Notável ensaio sobre a problemática da saúde, livro que é também um manifesto em defesa do SNS.
João Oliveira, director do IPO de Lisboa: O capitalismo é forma impeditiva de progresso na área da saúde; a despesa pública nos privados aumentou 70%, enquanto nos hospitais públicos os orçamentos se mantêm quase estáticos; a indústria farmacêutica tem uma influência negativa no modo como se relaciona com o SNS.
Carlos Seabra introduziu no seu discurso uma questão central e pertinente: Porque é que o combate às doenças que afligem a humanidade do nosso tempo, acontece de uma forma tão injusta e desigual?
Segundo Centenário do Nascimento de Marx: Legado, Intervenção, Luta. Transformar o mundo.
Vasco Cardoso: Marx define a génese do capitalismo, a sua natureza exploradora e opressora, apontando para a necessidade da sua superação; (...) A incapacidade do capitalismo para colocar a riqueza produzida ao serviço do bem comum.
Paulo Raimundo: Marx avança as condições para que o mundo possa ser transformado, e coloca nas mãos das classes exploradas os mecanismos para a sua libertação; os exploradores não cedem sem luta.
Pedro Santos Maia: Sem luta ideológica, sem luta argumentativa não há possibilidade de vencer o capitalismo e, citando Lenine: «Para vencer é preciso compreender.»
José Capucho: Na época em que vivemos o futuro não é o capitalismo, mas sim o Socialismo e a construção de uma sociedade nova.
25 de Abril: o processo revolucionário e a contra-revolução - Intervenções em torno de vários livros que têm a contra-revolução, e os seus mecanismo de embuste e cerco, como tema de análise.
António Avelãs Nunes, sobre «Da Revolução de Abril à Contra-Revolução Neoliberal»: Foi o Povo que lutou, que fez o 25 de Abril, a Reforma Agrária, que correu com a direita do poder; (...) Costa foi para Itália dizer que “Bruxelas não é igual a austeridade”: é sim, senhor Primeiro Ministro.
Baptista Alves, sobre «Diário da Contra-Revolução»: O 1º. Governo Constitucional fez, na prática, à revelia do seu próprio programa, um ataque feroz às principais conquista de Abril, iniciando assim o desmantelamento sistemático dessas conquistas.
Ribeiro Cardoso, sobre «O 25 de Novembro de 1975 e os Media Estatizados»: Este livro nasceu quando dei conta que em Portugal vivemos 40 anos de uma espécie de Alzheimer, graças aos média, aos discursos do poder e à escola.
O general Pedro de Pezarat Correia, um dos capitães de Abril, referiu o seu livro «da Descolonização», inventariando os momentos mais singulares desse processo.
Para falarem da sua obra literária, estiveram no Auditório os escritores Isabela Figueiredo e Ondjaki, ambos apresentados pelo editor Zeferino Coelho.
Isabela Figueiredo:
Essa bagagem , essa guerra interior sobre o colonianismo veio comigo, retornou comigo. Esse o sangue, essa a força sobre as minhas memórias coloniais.
Ondjaki: Existem poucos lugares no mundo em que um branco não passe livremente. O mesmo não acontece com os negros.
Neo-realismo. Uma Poética do Testemunho, de Manuel Gusmão
Carina Infante do Carmo: O título desta obra, em relação ao neo-realismo, é excepcional e o exercício crítico da escrita é notável; O Neo-realismo ainda hoje causa urticária em muita gente de direita e de esquerda pouco convicta; Este livro fala de Literatura e de qualidade literária. Quem diz que os textos neo-realistas não têm qualidade nunca os leu.
Gusmão, com a serenidade de quem conhece todos os enigmas: Escrevo para o Amigo que virá.