A «conversa boa» desmentida
Com Passos Coelho – como antes com José Sócrates e demais personagens de serviço no mesmo posto, nas últimas três décadas e meia –, repetem-se os casos em que o discurso da campanha eleitoral acaba traído pela prática no Governo. Com as 50 páginas do «acordo» dá-se um fenómeno semelhante, mas o tempo corre muito mais depressa: alguma «conversa boa», que adorna a Introdução e os parágrafos iniciais dos três capítulos desta novela de horrores, é desmentida logo de seguida, quando os «parceiros» enunciam as medidas mais ou menos concretas que pretendem realizar.
A parte de leão do «acordo» tem a ver com a legislação laboral. Preenche pouco mais de uma dúzia de páginas, mas foi este o conteúdo que justificou que o Governo recorresse ao artifício do «acordo», para tentar credibilizar a ideia de que as medidas seriam do interesse dos próprios trabalhadores e, por isso, estes deveriam aceitá-las. Verdade seja dita, para aprovar o que consta neste «acordo» o Governo poderia ter avançado com produção legislativa própria ou através do Parlamento, como fez no Orçamento do Estado para os trabalhadores da Administração Pública. E será necessária a sua iniciativa legislativa para que o «acordo» comece a fazer caminho para chegar a lei.
O esforço de co-responsabilização dos «parceiros», que nas matérias laborais surge amenizado pela aparência de negociação, é bastante mais visível nas outras quase 40 páginas, nos capítulos sobre «políticas económicas» e «políticas activas de emprego e formação profissional», onde se fala de apoios à internacionalização das empresas, reprogramação do QREN, promoção do empreendedorismo, reforço de financiamento das empresas, revitalização do tecido empresarial, promoção da concorrência, reforma da Administração Pública e da Justiça, combate à fraude e evasão fiscal e contributiva, combate à economia clandestina, prioridade à reabilitação urbana, promoção das actividades económicas. Tudo faz parte da política do Governo, que beneficia os grupos económicos e financeiros. Com um «acordo», seria possível implicar na execução dessa política os verdadeiros representantes dos trabalhadores – por isso tanto incómodo causou a justa posição da CGTP-IN, que negou assinar e prometeu combate firme.
Disfarce diminuído
O disfarce ficou reduzido às mãos que tudo assinam (da UGT) e aos tais parágrafos que adornam o texto e são desmentidos nas linhas seguintes. Deixamos aqui alguns exemplos desta hipocrisia de má consciência, para que as leitoras e os leitores também possam comparar esta «conversa boa» com as ameaças bem reais que o «acordo» contém e a que dedicamos este suplemento. São excertos da Introdução, conforme o documento publicado no site do Conselho Económico e Social.
«Boa» aposta – (...) «a dimensão dos desafios que hoje se nos colocam obriga-nos a ser simultaneamente mais ambiciosos e mais determinados. Esses desafios só poderão ser vencidos com um enorme esforço colectivo e uma aposta clara no crescimento da nossa economia, no reforço da competitividade das suas empresas, na qualificação dos seus activos e na criação de condições que permitam atacar o flagelo do desemprego e lançar as bases de um modelo de desenvolvimento sustentável gerador de empregos de qualidade».
«Boas» bases – (...) «importa lançar as bases para o relançamento do crescimento económico, de forma a aumentar o nível do emprego e melhorar as condições de vida e de trabalho».
«Boa» urgência – «Urge igualmente reforçar as políticas activas de emprego que permitam, nomeadamente, apoiar os desempregados na sua inserção no mercado de trabalho, incentivar a criação e a manutenção de emprego e reforçar a qualificação e empregabilidade dos trabalhadores no activo e dos desempregados.»
«Boa» revelação – «Revela-se, ainda, imperioso promover políticas de reforço da capacidade de adaptação das empresas portuguesas à mudança, nomeadamente através da negociação coletiva.»