Direito universal à Cultura só com um serviço público
Na audição realizada na semana passada com trabalhadores da Cultura, Jerónimo de Sousa insistiu na criação de um serviço público de cultura, com o Estado a garantir a liberdade de criação e fruição e a igualdade de oportunidades e acesso.
A componente cultural da democracia não está a ser garantida
A Cultura, para o PCP, «é imprescindível ao desenvolvimento, à liberdade, à democracia e à emancipação individual e colectiva», ao mesmo tempo que se assume como componente essencial ao desenvolvimento humano, convocando a «reflexão, o pensamento, o conhecimento, a participação, a busca do belo, a realização e a libertação do Homem». Assim justificou o Secretário-geral a insistência do PCP na criação de um serviço público para este sector, lembrando que a democracia cultural pressupõe «responsabilidades fundamentais de um Estado democrático», combinadas com a «participação e a criatividade individuais e colectivas».
A realidade, porém, está longe deste projecto, como ficou claro na audição realizada fez anteontem uma semana, na qual Jerónimo de Sousa lembrou que a crise epidémica «aprofundou uma crise estrutural que desde há muito o PCP, os artistas e a generalidade dos trabalhadores da cultura vinham denunciando». O subfinanciamento, a precariedade, os baixos salários, a ausência de horários de trabalho, as reformas de miséria, as elevadas taxas de desemprego e o abandono da profissão são algumas das suas mais graves consequências.
Caracterizando a política seguida no sector nas últimas décadas, e que urge inverter, o dirigente comunista referiu-se à sua «acentuada elitização, privatização e mercantilização, em que a cultura é concebida como apenas mais uma área da actividade económica, centrada em torno das chamadas indústrias culturais». O reforço da monocultura dominante, acrescentou, substitui a «presença livre e independente da criação», fragilizando desse modo o tecido cultural.
Estatuto é para rejeitar
As «soluções» apresentadas pelo Governo vão no sentido oposto ao que se impunha, concordaram os presentes – trabalhadores e criadores das mais variadas áreas da cultura, dirigentes sindicais e associativos do sector. O Estatuto dos Profisisonais da Área da Cultura, actualmente em consulta pública, suscitou duras críticas: «É muito mau», resumiu Jorge Pires, da Comissão Política.
Em várias intervenções, ficou evidente que o Estatuto mantém e consolida a normalização da precariedade, fazendo com que continue a ser mais vantajoso para quem contrata a recibos verdes. Para Rui Galveias, presidente do sindicato do sector, o CENA-STE, os trabalhadores da Cultura são trabalhadores como os outros e devem ter direitos semelhantes, inscritos na lei. Ora, o Estatuto assume precisamente que o trabalho na Cultura é por definição «intermitente».
A deputada Ana Mesquita, que falara logo após o Secretário-geral do Partido, clarificara já essa questão, lembrando as várias componentes do trabalho que vão para lá dos momentos de apresentação – como ensaios, estudos ou a elaboração de relatórios. A sazonalidade ou mesmo a pontualidade do trabalho pago não devem ser confundidas com a inexistência desse mesmo trabalho, ficou ali uma vez mais claro.
Tal como nos restantes sectores, importa dar combate à precariedade e aos falsos recibos verdes, garantir aos trabalhadores o acesso a carreiras contributivas regulares e à protecção social e, através do pagamento de salários e cachês justos, valorizar todas as componentes do trabalho. Estas são algumas das propostas do PCP para os trabalhadores do sector, reafirmadas uma vez mais na audição realizada a 31 de Maio.
1% no mínimo
O subfinanciamento crónico é outro dos mais graves problemas colocados ao sector da cultura e ao desígnio constitucional a que ele corresponde: a garantia universal do direito à Cultura. Como sublinhou Ana Mesquita, «não havendo financiamento digno, há reflexos em toda a cadeia de criação». Hoje, devido ao parco financiamento e ao modelo em vigor de apoio às artes, vastas zonas do País encontram-se privadas de produção cultural própria.
As consequências do subfinanciamento atingem todas as áreas da Cultura e vários testemunhos confirmaram-no. No arquivo fotográfico da Direcção Geral do Património Cultural só há dois fotógrafos, um com 60 anos e outro com 55. Como não há novos elementos na equipa e se trata de um trabalho altamente especializado, é de prever que numa década «não haverá funcionários nesta área», denunciou-se. Na semana passada, ficou a saber-se que o Museu Nacional de Arte Antiga não abriria todas as salas de exposição devido à falta de vigilantes.
Ganha assim redobrada actualidade a proposta do PCP de consignar um por cento do Orçamento do Estado para o sector da Cultura, um valor que deve ser assumido como uma base e que pode ir mais além. Porém, hoje está-se mais perto do zero do que do um.
Tanto Jerónimo de Sousa, na abertura, como Jorge Pires, no encerramento, insistiram na necessidade de elevar o patamar da luta dos artistas e trabalhadores do sector, como factor decisivo para garantir a cultura enquanto pilar da democracia devidamente valorizado. «Temos de repetir mais vezes o dia 6 de Abril de 2018», concluiu Jorge Pires, recordando a grande manifestação realizada nesse dia, que elevou o patamar da luta no sector e resultou em importantes, embora insuficientes, avanços.