Grandes manobras de privatização da água

A ânsia do lucro

A política da água como recurso estratégico constitui uma componente estruturante do desenvolvimento integrado humano, de equilíbrio com o espaço envolvente, de autonomia e de sustentabilidade.

A água não pode ser transformada numa mercadoria

Na idade da inocência, a água era um bem natural que corria nos rios e ribeiros sem nos darmos conta. Os aguadeiros, as mulheres e os homens, colhiam-na nos lugares públicos, e a nossa admiração, nos sítios mais atrasados, era que fosse possível pagar para a consumir em casa. Claro que havia os crimes, as questões da água, nos campos, mas esse poder natural de tomar a água como se fizesse parte do nosso corpo e da nossa vida era ainda ancestral e sagrado.
Depois, vieram as fábricas, as poluições mais profundas e destruidoras. A ânsia do lucro a todo o custo, a transformação dos rios e de outros lugares em locais infectos e dolorosos.
Hoje, pode avaliar-se o grau de desenvolvimento de um país e de um povo pela forma como encara a gestão da água como recurso finito, móvel e reutilizável, de propriedade comum, indissociável das políticas territorial e ambiental. A política da água como recurso estratégico constitui uma componente estruturante do desenvolvimento integrado humano, de equilíbrio com o espaço envolvente, de autonomia e de sustentabilidade.
As massas de água que fazem parte do ciclo hidrológico e incluem os rios, lagos naturais e artificiais, albufeiras, os aquaríferos subterrâneos, as águas costeiras, os mares e oceanos, são públicas. É responsabilidade inalienável do Estado a protecção, valorização e gestão das massas de água públicas, assim como a afectação dos direitos de uso, numa perspectiva de desenvolvimento saudável e equilibrado, de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e de equidade no usufruto dos benefícios proporcionados pela água, sem pôr em causa o bem-estar das gerações futuras nem os equilíbrios ambientais.
Ora, neste contexto, um bem fundamental, inerente ao homem e à sua sobrevivência num mundo ameaçado, não pode ser transformado numa mercadoria pronta a ser comercializada, num recurso escasso em que o seu valor poderá agravar-se infinitamente. Nessa apropriação brutal, a água deixaria de ser considerada património da humanidade e poderia passar a ser o negócio do século, ou o «petróleo do século», se a política de condicionamento da intervenção estatal continuar a ser seguida na União Europeia, proporcionando as condições necessárias para a sua privatização.
Em Portugal, a alienação dos sistemas multimunicipais foi já salientada como o primeiro passo nessa perspectiva, tirando-se às autarquias competências exclusivas que passaram para a sub-holding Águas de Portugal SA, com acesso prioritário aos fundos de coesão, sabendo-se que, entretanto, grupos dominados por multinacionais obtiveram concessões de serviços municipalizados de abastecimento e saneamento.

As «ajudas» do Governo

Nos jornais portugueses, continuam a surgir a cada passo artigos que avançam habilmente propostas de parcerias, de evoluções supostamente positivas para a humanidade, para o nosso país, para os concelhos e para as populações, mas convém estar atento, estarmos todos atentos e procurarmos entender em profundidade o que significam, na teoria e na prática, a criação em 2002 do Plano Nacional da Água, o que são e podem ser Planos de Bacia Hidrográfica e os Conselhos de Bacia, por exemplo, num contexto cada vez mais complexo e enredado, à volta de uma riqueza insofismável e cobiçada.
No dia 1 de Outubro de 2003 assinalou-se o Dia Mundial da Água. O ano passado foi proclamado pelas Nações Unidas como o Ano Internacional da Água Doce. Isto significa que o mundo desperta para esta realidade estratégica e em perigo, em que é evidente o papel da União Europeia na criação de condições favoráveis à liberalização, desregulamentação e privatização de serviços públicos básicos.
As prioridades concedidas à concorrência, ao mercado e à elaboração de directivas comunitárias sobre contratação pública, sobre o aumento de padrões ambientais e reestruturação de serviços públicos, foram abrindo caminho à entrada de empresas privadas na gestão da água. Como peça-chave desta estratégia está a directiva-quadro sobre a água. Em Portugal, o Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águas Residuais 2000-2006 e a abertura à privatização do IPE, logo da Águas de Portugal e da EGF, empresa congénere para os resíduos sólidos, propiciam ou não caminhos de contaminação de um sector fundamental para a nossa vida e desenvolvimento?

Adensam-se nuvens sobre a EPAL

A preços de 1999, o volume de negócios anual da água apurado é de cerca de 450 milhões de contos. A Águas de Portugal, SA, detém a maioria de capital de empresas multimunicipais e municipais, abrangendo, em 2002, 199 municípios, servindo mais de 5 milhões de habitantes e gerindo investimentos num montante superior a 1,7 mil milhões de euros apoiados pelos Fundos de Coesão, sendo responsável pelo fornecimento de 1560 mil metros cúbicos de água por dia, num volume superior a 360 milhões de euros por ano.
Em Lisboa e na região, adensam-se as nuvens sobre a EPAL, que abastece 23 municípios e serve cerca de 2,5 milhões de habitantes. Esta empresa pública é reconhecidamente uma entidade prestigiada, que honra Lisboa e a região na qualidade técnica dos seus trabalhadores e serviços. Tem uma experiência muito grande que junta os abastecimentos em baixa (directamente ao consumidor) e em alta (fornecimento para revenda), tem profissionais muito habilitados e é o sistema tecnicamente mais evoluído. Por isso mesmo, torna-se profundamente necessário abrir espaços de diálogo e de debate decisivos na compreensão dos aspectos relativos a água enquanto problema central no equilíbrio ambiental, também na nossa cidade, sublinhando «a importância da circulação da água, tendo presente que uma área significativa de Lisboa assenta num pântano e que o processo de canalização e desvio das linhas de água e a impermeabilização dos solos tem como consequência imediata a condução rápida da água para o Tejo, criando condições para a ocorrência de cheias no Inverno e secura no Verão».

Combater os negocismos

Temos assim de proceder à identificação das realidades diferenciadas em que vivemos, na procura de linhas de água e de caminhos que irão abrir novos conhecimentos e perspectivas à Assembleia Municipal, a todas as entidades do Município e à população de Lisboa. População que é a principal razão de existência e de actividade que nos orienta, na procura de situações de reflexão conjunta e séria, porque só assim é possível corresponder à profundidade e ao interesse de temas que são fundamentais e decisivos para a cidade, onde queremos viver em paz, com qualidade de vida e limpidez de águas e de ambiente, separando o trigo do joio, a pureza necessária da poluição sonora e propagandística que às vezes nos oculta e obscurece o essencial das nossas existências.
O anterior governo anunciou que iria privatizar até 49 por cento do grupo Águas de Portugal S.A. «para financiar investimentos no abastecimento e saneamento de águas em Portugal». Que amigos eles são do bem público… «Santas palavras» que nem precisam de água benta para cheirarem ao mofo do negocismo e da entrega mais acentuada a sectores privados de um bem inestimável para todos nós. Assim, temos de estar atentos e combater estes propósitos de criar condições para uma maior influência dos mecanismos de mercado neste bem público que é essencial para a nossa existência e sobrevivência.


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