A descolonização portuguesa
Enviado por Spínola para Angola, o almirante Rosa Coutinho fez o que era, para a contra-revolução, impensável: garantir o caminho irreversível da descolonização de Angola. À conversa com o Avante!, contou-nos como tudo se passou. Acrescentamos ao depoimento alguns dos acontecimentos mais relevantes nas outras ex-colónias.
A contra-revolução tudo fez para impedir a independência
No dia 26 de Abril de 1974, o Comité Central do PCP tinha, no primeiro comunicado em liberdade, esclarecido que, quanto antes, era necessário encetar as negociações com os legítimos movimentos de libertação e garantir que mais nenhum português fosse forçado a defender um regime fascista colonial numa guerra.
Durante a guerra, o PCP foi o «único depositário e intérprete da vontade do povo português de viver na amizade e na colaboração com todos os povos do mundo na base da igualdade de direitos e deveres», afirmava o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, ainda em 1961, numa saudação que enviou ao Avante!, na primeira quinzena de Julho.
Por ter feito parte da Junta de Salvação Nacional, o almirante Rosa Coutinho contou-nos como, logo no primeiro dia de Revolução, após a consagração da vitória militar e o derrubamento de Marcelo Caetano, Spínola e os seus apoiantes na Junta forçaram a alterações no conteúdo programático do MFA.
Manobras da Junta
Segundo o almirante, na noite do dia 25, o programa foi «ligeiramente modificado», motivo pelo qual demorou muito tempo para ser publicamente anunciado. E as modificações não foram pequenas, provando que a contra-revolução já se instalara instalada no próprio movimento: a primeira teve que ver com a «rápida extinção da Pide-DGS». A questão foi levantada por Silvério Marques, e Costa Gomes concordou que era melhor não ficar escrito aquele compromisso em relação ao “território ultramarino”, tendo-se decidido antes alterar a designação da polícia política nas ex-colónias para polícia de informação militar», expurgando os seus elementos reconhecidamente mais criminosos.
Mas também o direito à autodeterminação dos povos das colónias, que constava no programa inicial, foi suprimido do programa, e substituído pela ideia de que «as guerras coloniais tinham que ter uma solução política e não militar».
Com esta supressão do direito à autodeterminação, ficaram reunidas as condições para que a contra-revolução aproveitasse também o processo de descolonização para criar entraves e dificuldades à jovem democracia portuguesa.
O direito de autodeterminação só passou a ser reconhecido após as grandes manifestações populares contra a partida de soldados portugueses, um dia depois de o almirante ter sido nomeado para assumir a governação de Angola, numa altura em que já era inevitável o reconhecimento, devido a pressões das Nações Unidas, externamente, e às sucessivas manifestações populares exigindo, «nem mais um soldado para as colónias», por outro.
Logo à partida, estava criada uma divisão interna no MFA, «principalmente por culpa da Força Aérea e até de parte do Exército», acrescentou o almirante, recordando ainda que «Silvério Marques, embora estivesse na Junta em representação do Exército, não tinha sido escolhido pelos militares daquele ramo, mas antes por Spínola e Costa Gomes».
O protocolo em anexo - que acabou por não ser cumprido - estabelecia que, após a constituição da Junta de Salvação Nacional, devia decorrer um período de duas semanas para os elementos se conhecerem e elegerem um presidente que seria também o Presidente da República.
No entanto, ««houve uma combinação entre os dois, até porque eram ambos as figuras mais patenteadas. O general Costa Gomes tomou a iniciativa e disse a Spínola, “bom, Presidente da República ficas tu. Eu fico Chefe de Estado Maior”», revelou o almirante. Esta situação inviabilizou a concretização daquele protocolo.
A formação da Junta
A comissão coordenadora do MFA tinha decidido que a Revolução devia ser liderada por oficiais generais. Caso algum ramo das forças armadas não pudesse estar representado por tal patente, seriam escolhidos oficiais superiores que seriam, então, promovidos a generais, de forma a que se constituísse a Junta de Salvação Nacional.
Com este critério, Costa Gomes e Spínola tomaram a liderança da Junta, uma vez que, na própria comissão, estavam apoiantes confessos de Spínola.
De forma a garantir a representação de todos os ramos, foi decidida a composição da Junta, que contou com três oficiais do exército, dois da marinha e dois da força aérea. Cada ramo militar efectuou os respectivos convites. A Rosa Coutinho, é-lhe dado a conhecer o programa do MFA e o protocolo em anexo, apenas dois dias antes do dia 25.
«À última hora, acabou por ser convidado o general Silvério Marques, que não tinha qualquer conhecimento sobre a revolução e foi, inclusivamente, preso no 25 de Abril», recordou Rosa Coutinho.
Ao constatar a composição da Junta, o almirante compreendeu que a contra-revolução estava, logo à partida, instalada no seu seio.
«Na reunião da Pontinha de dia 25, fiquei surpreso ao verificar que, dos sete oficiais designados para a Junta, apenas quatro conheciam o programa do MFA, havendo alguns, como Spínola, que não concordavam com ele».
Notícias do vento que passa
Assim que a notícia da Revolução atravessa o Atlântico e chega às colónias portuguesas, os sentimentos anticoloniais por parte dos povos africanos e de todos os democratas e progressistas portugueses tornou-se incontível. De forma mais acentuada em Moçambique e em Angola, todos os movimentos e organizações políticas sindicais e populares emergiram da sombra do fascismo para exigir o direito à independência, enquanto aumentavam as operações das guerrilhas, de forma a pressionar o novo governo português a fazer a paz, descolonizando.
Em Angola e Moçambique, os trabalhadores saíram pela primeira vez, à luz do dia, para, através de uma onda de greves, exigirem o fim da guerra.
Criada pelo Exército português, na tentativa de dividir o movimento independentista angolano, a UNITA de Jonas Savimbi e a pró-americana, FNLA, sediada no Zaire de Mobutu, iniciaram uma campanha de terror contra os colonos, ao mesmo tempo que as multinacionais e o comércio proveniente da «metrópole» abandonavam o país com tudo o que podiam. Daqui até à escassez e falta de bens essenciais para satisfazer a população foi um instante.
A situação agrava-se e dá-se a fuga generalizada de colonos para as grandes cidades. Influenciados pela propaganda do regime e forçados a abandonar as «suas» terras e bens, estes colonos foram, durante todo o processo, manipulados para que se convencessem de que o motivo das suas perdas se devia à revolução e não ao colonialismo e ao regime fascista.
Em Lourenço Marques – actual Maputo -, a Junta Governativa de Moçambique enceta negociações, após ter ameaçado, ela mesma, iniciar as conversações, caso o novo governo de Portugal não tomasse a iniciativa.
Chegado a Angola cinquenta dias após o 25 de Abril, Silvério Marques, nomeado para a primeira Junta em Angola, encontra organizados os sindicatos em greve e os partidos formados, com preponderância para o MPLA.
O general Silvino Silvério Marques tinha assumido a primeira Junta Governativa de Angola, após o 25 de Abril, «embora nada tivesse a ver com a JSN mas fosse apenas amigo pessoal de Spínola e era um governador da “velha guarda”», recordou o almirante Rosa Coutinho, acrescentando que «era, por isso, natural que não encarasse a descolonização com grande entusiasmo».
Como Spínola, tinha uma ideia de descolonização – a tal apresentada no livro, “Portugal e o futuro” – «traduzida numa autodeterminação mitigada, que pretendia manter profundas ligações de dependência com a “metrópole”».
Aprender a liberdade
Em Moçambique, perante as manifestações de alegria popular realizadas em Lourenço Marques, actual Maputo, no dia da assinatura do acordo para a independência, colonos portugueses causam tumultos e massacres racistas. Posteriormente, a FRELIMO escoltou muitos colonos até à fronteira sul-africana, de forma a garantir a sua segurança.
O reconhecimento da Guiné surge a trinta de Agosto.
Em Angola, a segunda Junta Governativa chega, liderada por Rosa Coutinho, a 24 de Julho de 1974, com o país envolto em tumultos. Ultrapassado pela dinâmica dos acontecimentos, Spínola reconhece, finalmente, no dia 27, o direito das colónias à independência, apenas um dia antes de ser decretado o cessar-fogo com a FRELIMO, em Moçambique.
Em Angola, ainda estava por estabelecer um diálogo consequente com os vários movimentos presentes no terreno.
Apenas a 31 de Outubro, é firmado o cessar-fogo com o MPLA, «a única força política com quem se podia conversar», garante o almirante.
«A UNITA foi uma criação do Exército Português em associação com os interesses económicos corporativos nacionais e das multinacionais que exploravam as matérias-primas das colónias. Tinha sido utilizada, inclusivamente, para combater o MPLA e vivia às custas do Exército Português. Existem documentos que comprovam o apoio militar do exército, até para reparar as suas armas nos quartéis.»
Um processo traumático
«A descolonização portuguesa aconteceu tardiamente, se comparada com o processo que teve início após a Segunda Guerra Mundial. Contudo, não foi a mais traumática, tendo-se conseguido evitar fenómenos como foi o caso do insucesso francês na Indochina – Vietname – e na Argélia, e dos ingleses na Índia. Comparando com estes casos, tive a noção de que se pretendia fazer o mesmo com as tentativas de separação de Cabinda de Angola, situação que a Junta conseguiu evitar», afirmou o almirante.
«Portugal saiu do processo de descolonização de cabeça levantada, embora traumáticamente», acrescentou.
Mais de um milhão de portugueses emigraram durante a guerra, para fugir a esta e à má situação económica que se vivia no País, devido ao esforço de guerra que absorvia metade do orçamento de Estado português. Mas, ao contrário do que pretendiam as forças do regime deposto, emigraram para a Europa e não para as colónias.
Negociação «caricata»
A culminar a sua actuação em Angola, Rosa Coutinho recorda a importância da preparação dos acordos de Alvor, em Portimão, onde foi firmada a transferência de poderes para o MPLA, a UNITA e a FNLA. Silvério Marques tinha obtido um cessar-fogo com a UNITA, «os lacaios do Exército Português», lembra o almirante. O cessar-fogo com a FNLA seguiu-se após os acordos do Sal. «Ainda hoje não se sabe o que foi acordado entre Spínola e Mobutu», uma vez que a FNLA era sustentada pela CIA norte-americana, através do ditador do Zaire. «Certo é que, obedecendo a instruções americanas, Spínola pretendia dar aval a Mobutu e à FNLA. O presidente norte-americano, Nixon, e Spínola encontraram-se nos Açores ainda antes da minha nomeação para Angola e nunca ninguém chegou a saber o que é que foi realmente discutido nessa reunião nos Açores, que contou também com a presença de um general norte-americano que tinha estado ligado à ditadura militar brasileira. Ele nunca explicou à JSN o que foi falado.»
«Caricata» foi como o almirante classificou a negociação com a FNLA. O almirante recebeu um telefonema do ministro dos Negócios Estrangeiros do Zaire, perguntando se o que tinha sido acordado no Sal, em 15 de Setembro, continuava válido. «Respondi que em princípio sim, mas eu iria mandar uma delegação ao Zaire para se definir um acordo de cessar-fogo», lembrou Rosa Coutinho.
A delegação foi nomeada por Costa Gomes e a representação foi recebida por Mobutu, com um jantar num iate particular, tendo saído de Kinshasa com um acordo assinado com a FNLA. Tudo isto só após o 28 de Setembro, à semelhança do acordo com o MPLA que foi assinado após as duas primeiras negociações.
Os motivos do pânico
«A guerra civil foi a principal causa do pânico e da fuga generalizada dos colonos portugueses», considerou o almirante.
Em Angola, as forças racistas sul-africanas criaram um pelotão de mercenários onde estavam incluídos portugueses para, com a UNITA, sabotar e desestabilizar todas as tentativas do MPLA para tornar o país governável. Juntamente com aquele pelotão, Savimbi, líder da UNITA e ex-militar das tropas portuguesas, entra pela fronteira Sul angolana e avança até às portas de Luanda. A Norte, a FNLA de Holden Roberto completou o cerco à capital, também com o apoio de mercenários provenientes de todos os cantos do mundo.
Confrontado com os apoios cedidos pelo imperialismo à UNITA e à FNLA, o MPLA consegue o apoio, que viria a revelar-se decisivo, do Estado cubano. Foi heróica, no pleno respeito pela vontade do povo de Angola, a solidariedade activa demonstrada pelo país de Fidel Castro ao MPLA de Agostinho Neto, durante todo o tempo que durou a guerra civil.
A mesma luta
No dia 28 de Junho de 1974, no comício que decorreu no Campo Pequeno, em Lisboa, Álvaro Cunhal afirmava que «a questão colonial tornou-se mais complexa na medida em que não se pôs ainda fim à guerra e não existe uma clara perspectiva da solução do problema.[...] É necessário realizar negociações com os movimentos de libertação nacional». Esta afirmação estava em total consonância com as aspirações dos comunistas portugueses para as colónias e para os povos irmãos africanos, afirmada no último congresso clandestino do Partido, em 1965: «A nada de positivo conduziriam projectos de substituir as formas tradicionais do colonialismo por novas formas de colonialismo e neocolonialismo. A solução do problema colonial não poderá ser outra que não seja o fim da guerra colonial e do colonialismo, com o reconhecimento dos povos à autodeterminação e independência»[1].
Com a Revolução de Abril, estes objectivos foram plenamente alcançados e assim se escreveu uma importante página na História de Portugal.
1- Álvaro Cunhal em «A revolução portuguesa», 1975
Razões de uma escolha
A escolha de Rosa Coutinho para assumir os destinos da Junta Governativa de Angola, foi, no mínimo, surpreendente. «Eu não era conhecedor do terreno. A colónia que eu conhecia melhor era Moçambique, onde estive em comissão desde 1964 a 1972. Angola não conhecia. Porquê eu? Para mim já não é incógnita. Fui escolhido por Spínola porque ele estava convencido de que eu não me aguentava nem quinze dias. Era uma forma de me queimar. Numa situação onde um homem cheio de experiência colonial - Sílvino Silvério Marques - tinha falhado, um Rosa Coutinho, mediante o seu ponto de vista colonial, não ia ter sucesso. Tive confirmação disso quando as forças de Spínola tentam liquidar-me, logo no dia 10 de Agosto, quando se dá a invasão do palácio, em Luanda. Só me salvei porque fui para a “cabeça do touro”. Mas a invasão realizou-se com a cooperação da Polícia de Segurança Pública que devia defender o palácio mas que abriu as portas aos manifestantes. Fiquei encurralado no palácio e, nessa altura, tive consciência de que tinha sido mandado para Angola para queimar».
Durante a guerra, o PCP foi o «único depositário e intérprete da vontade do povo português de viver na amizade e na colaboração com todos os povos do mundo na base da igualdade de direitos e deveres», afirmava o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, ainda em 1961, numa saudação que enviou ao Avante!, na primeira quinzena de Julho.
Por ter feito parte da Junta de Salvação Nacional, o almirante Rosa Coutinho contou-nos como, logo no primeiro dia de Revolução, após a consagração da vitória militar e o derrubamento de Marcelo Caetano, Spínola e os seus apoiantes na Junta forçaram a alterações no conteúdo programático do MFA.
Manobras da Junta
Segundo o almirante, na noite do dia 25, o programa foi «ligeiramente modificado», motivo pelo qual demorou muito tempo para ser publicamente anunciado. E as modificações não foram pequenas, provando que a contra-revolução já se instalara instalada no próprio movimento: a primeira teve que ver com a «rápida extinção da Pide-DGS». A questão foi levantada por Silvério Marques, e Costa Gomes concordou que era melhor não ficar escrito aquele compromisso em relação ao “território ultramarino”, tendo-se decidido antes alterar a designação da polícia política nas ex-colónias para polícia de informação militar», expurgando os seus elementos reconhecidamente mais criminosos.
Mas também o direito à autodeterminação dos povos das colónias, que constava no programa inicial, foi suprimido do programa, e substituído pela ideia de que «as guerras coloniais tinham que ter uma solução política e não militar».
Com esta supressão do direito à autodeterminação, ficaram reunidas as condições para que a contra-revolução aproveitasse também o processo de descolonização para criar entraves e dificuldades à jovem democracia portuguesa.
O direito de autodeterminação só passou a ser reconhecido após as grandes manifestações populares contra a partida de soldados portugueses, um dia depois de o almirante ter sido nomeado para assumir a governação de Angola, numa altura em que já era inevitável o reconhecimento, devido a pressões das Nações Unidas, externamente, e às sucessivas manifestações populares exigindo, «nem mais um soldado para as colónias», por outro.
Logo à partida, estava criada uma divisão interna no MFA, «principalmente por culpa da Força Aérea e até de parte do Exército», acrescentou o almirante, recordando ainda que «Silvério Marques, embora estivesse na Junta em representação do Exército, não tinha sido escolhido pelos militares daquele ramo, mas antes por Spínola e Costa Gomes».
O protocolo em anexo - que acabou por não ser cumprido - estabelecia que, após a constituição da Junta de Salvação Nacional, devia decorrer um período de duas semanas para os elementos se conhecerem e elegerem um presidente que seria também o Presidente da República.
No entanto, ««houve uma combinação entre os dois, até porque eram ambos as figuras mais patenteadas. O general Costa Gomes tomou a iniciativa e disse a Spínola, “bom, Presidente da República ficas tu. Eu fico Chefe de Estado Maior”», revelou o almirante. Esta situação inviabilizou a concretização daquele protocolo.
A formação da Junta
A comissão coordenadora do MFA tinha decidido que a Revolução devia ser liderada por oficiais generais. Caso algum ramo das forças armadas não pudesse estar representado por tal patente, seriam escolhidos oficiais superiores que seriam, então, promovidos a generais, de forma a que se constituísse a Junta de Salvação Nacional.
Com este critério, Costa Gomes e Spínola tomaram a liderança da Junta, uma vez que, na própria comissão, estavam apoiantes confessos de Spínola.
De forma a garantir a representação de todos os ramos, foi decidida a composição da Junta, que contou com três oficiais do exército, dois da marinha e dois da força aérea. Cada ramo militar efectuou os respectivos convites. A Rosa Coutinho, é-lhe dado a conhecer o programa do MFA e o protocolo em anexo, apenas dois dias antes do dia 25.
«À última hora, acabou por ser convidado o general Silvério Marques, que não tinha qualquer conhecimento sobre a revolução e foi, inclusivamente, preso no 25 de Abril», recordou Rosa Coutinho.
Ao constatar a composição da Junta, o almirante compreendeu que a contra-revolução estava, logo à partida, instalada no seu seio.
«Na reunião da Pontinha de dia 25, fiquei surpreso ao verificar que, dos sete oficiais designados para a Junta, apenas quatro conheciam o programa do MFA, havendo alguns, como Spínola, que não concordavam com ele».
Notícias do vento que passa
Assim que a notícia da Revolução atravessa o Atlântico e chega às colónias portuguesas, os sentimentos anticoloniais por parte dos povos africanos e de todos os democratas e progressistas portugueses tornou-se incontível. De forma mais acentuada em Moçambique e em Angola, todos os movimentos e organizações políticas sindicais e populares emergiram da sombra do fascismo para exigir o direito à independência, enquanto aumentavam as operações das guerrilhas, de forma a pressionar o novo governo português a fazer a paz, descolonizando.
Em Angola e Moçambique, os trabalhadores saíram pela primeira vez, à luz do dia, para, através de uma onda de greves, exigirem o fim da guerra.
Criada pelo Exército português, na tentativa de dividir o movimento independentista angolano, a UNITA de Jonas Savimbi e a pró-americana, FNLA, sediada no Zaire de Mobutu, iniciaram uma campanha de terror contra os colonos, ao mesmo tempo que as multinacionais e o comércio proveniente da «metrópole» abandonavam o país com tudo o que podiam. Daqui até à escassez e falta de bens essenciais para satisfazer a população foi um instante.
A situação agrava-se e dá-se a fuga generalizada de colonos para as grandes cidades. Influenciados pela propaganda do regime e forçados a abandonar as «suas» terras e bens, estes colonos foram, durante todo o processo, manipulados para que se convencessem de que o motivo das suas perdas se devia à revolução e não ao colonialismo e ao regime fascista.
Em Lourenço Marques – actual Maputo -, a Junta Governativa de Moçambique enceta negociações, após ter ameaçado, ela mesma, iniciar as conversações, caso o novo governo de Portugal não tomasse a iniciativa.
Chegado a Angola cinquenta dias após o 25 de Abril, Silvério Marques, nomeado para a primeira Junta em Angola, encontra organizados os sindicatos em greve e os partidos formados, com preponderância para o MPLA.
O general Silvino Silvério Marques tinha assumido a primeira Junta Governativa de Angola, após o 25 de Abril, «embora nada tivesse a ver com a JSN mas fosse apenas amigo pessoal de Spínola e era um governador da “velha guarda”», recordou o almirante Rosa Coutinho, acrescentando que «era, por isso, natural que não encarasse a descolonização com grande entusiasmo».
Como Spínola, tinha uma ideia de descolonização – a tal apresentada no livro, “Portugal e o futuro” – «traduzida numa autodeterminação mitigada, que pretendia manter profundas ligações de dependência com a “metrópole”».
Aprender a liberdade
Em Moçambique, perante as manifestações de alegria popular realizadas em Lourenço Marques, actual Maputo, no dia da assinatura do acordo para a independência, colonos portugueses causam tumultos e massacres racistas. Posteriormente, a FRELIMO escoltou muitos colonos até à fronteira sul-africana, de forma a garantir a sua segurança.
O reconhecimento da Guiné surge a trinta de Agosto.
Em Angola, a segunda Junta Governativa chega, liderada por Rosa Coutinho, a 24 de Julho de 1974, com o país envolto em tumultos. Ultrapassado pela dinâmica dos acontecimentos, Spínola reconhece, finalmente, no dia 27, o direito das colónias à independência, apenas um dia antes de ser decretado o cessar-fogo com a FRELIMO, em Moçambique.
Em Angola, ainda estava por estabelecer um diálogo consequente com os vários movimentos presentes no terreno.
Apenas a 31 de Outubro, é firmado o cessar-fogo com o MPLA, «a única força política com quem se podia conversar», garante o almirante.
«A UNITA foi uma criação do Exército Português em associação com os interesses económicos corporativos nacionais e das multinacionais que exploravam as matérias-primas das colónias. Tinha sido utilizada, inclusivamente, para combater o MPLA e vivia às custas do Exército Português. Existem documentos que comprovam o apoio militar do exército, até para reparar as suas armas nos quartéis.»
Um processo traumático
«A descolonização portuguesa aconteceu tardiamente, se comparada com o processo que teve início após a Segunda Guerra Mundial. Contudo, não foi a mais traumática, tendo-se conseguido evitar fenómenos como foi o caso do insucesso francês na Indochina – Vietname – e na Argélia, e dos ingleses na Índia. Comparando com estes casos, tive a noção de que se pretendia fazer o mesmo com as tentativas de separação de Cabinda de Angola, situação que a Junta conseguiu evitar», afirmou o almirante.
«Portugal saiu do processo de descolonização de cabeça levantada, embora traumáticamente», acrescentou.
Mais de um milhão de portugueses emigraram durante a guerra, para fugir a esta e à má situação económica que se vivia no País, devido ao esforço de guerra que absorvia metade do orçamento de Estado português. Mas, ao contrário do que pretendiam as forças do regime deposto, emigraram para a Europa e não para as colónias.
Negociação «caricata»
A culminar a sua actuação em Angola, Rosa Coutinho recorda a importância da preparação dos acordos de Alvor, em Portimão, onde foi firmada a transferência de poderes para o MPLA, a UNITA e a FNLA. Silvério Marques tinha obtido um cessar-fogo com a UNITA, «os lacaios do Exército Português», lembra o almirante. O cessar-fogo com a FNLA seguiu-se após os acordos do Sal. «Ainda hoje não se sabe o que foi acordado entre Spínola e Mobutu», uma vez que a FNLA era sustentada pela CIA norte-americana, através do ditador do Zaire. «Certo é que, obedecendo a instruções americanas, Spínola pretendia dar aval a Mobutu e à FNLA. O presidente norte-americano, Nixon, e Spínola encontraram-se nos Açores ainda antes da minha nomeação para Angola e nunca ninguém chegou a saber o que é que foi realmente discutido nessa reunião nos Açores, que contou também com a presença de um general norte-americano que tinha estado ligado à ditadura militar brasileira. Ele nunca explicou à JSN o que foi falado.»
«Caricata» foi como o almirante classificou a negociação com a FNLA. O almirante recebeu um telefonema do ministro dos Negócios Estrangeiros do Zaire, perguntando se o que tinha sido acordado no Sal, em 15 de Setembro, continuava válido. «Respondi que em princípio sim, mas eu iria mandar uma delegação ao Zaire para se definir um acordo de cessar-fogo», lembrou Rosa Coutinho.
A delegação foi nomeada por Costa Gomes e a representação foi recebida por Mobutu, com um jantar num iate particular, tendo saído de Kinshasa com um acordo assinado com a FNLA. Tudo isto só após o 28 de Setembro, à semelhança do acordo com o MPLA que foi assinado após as duas primeiras negociações.
Os motivos do pânico
«A guerra civil foi a principal causa do pânico e da fuga generalizada dos colonos portugueses», considerou o almirante.
Em Angola, as forças racistas sul-africanas criaram um pelotão de mercenários onde estavam incluídos portugueses para, com a UNITA, sabotar e desestabilizar todas as tentativas do MPLA para tornar o país governável. Juntamente com aquele pelotão, Savimbi, líder da UNITA e ex-militar das tropas portuguesas, entra pela fronteira Sul angolana e avança até às portas de Luanda. A Norte, a FNLA de Holden Roberto completou o cerco à capital, também com o apoio de mercenários provenientes de todos os cantos do mundo.
Confrontado com os apoios cedidos pelo imperialismo à UNITA e à FNLA, o MPLA consegue o apoio, que viria a revelar-se decisivo, do Estado cubano. Foi heróica, no pleno respeito pela vontade do povo de Angola, a solidariedade activa demonstrada pelo país de Fidel Castro ao MPLA de Agostinho Neto, durante todo o tempo que durou a guerra civil.
A mesma luta
No dia 28 de Junho de 1974, no comício que decorreu no Campo Pequeno, em Lisboa, Álvaro Cunhal afirmava que «a questão colonial tornou-se mais complexa na medida em que não se pôs ainda fim à guerra e não existe uma clara perspectiva da solução do problema.[...] É necessário realizar negociações com os movimentos de libertação nacional». Esta afirmação estava em total consonância com as aspirações dos comunistas portugueses para as colónias e para os povos irmãos africanos, afirmada no último congresso clandestino do Partido, em 1965: «A nada de positivo conduziriam projectos de substituir as formas tradicionais do colonialismo por novas formas de colonialismo e neocolonialismo. A solução do problema colonial não poderá ser outra que não seja o fim da guerra colonial e do colonialismo, com o reconhecimento dos povos à autodeterminação e independência»[1].
Com a Revolução de Abril, estes objectivos foram plenamente alcançados e assim se escreveu uma importante página na História de Portugal.
1- Álvaro Cunhal em «A revolução portuguesa», 1975
Razões de uma escolha
A escolha de Rosa Coutinho para assumir os destinos da Junta Governativa de Angola, foi, no mínimo, surpreendente. «Eu não era conhecedor do terreno. A colónia que eu conhecia melhor era Moçambique, onde estive em comissão desde 1964 a 1972. Angola não conhecia. Porquê eu? Para mim já não é incógnita. Fui escolhido por Spínola porque ele estava convencido de que eu não me aguentava nem quinze dias. Era uma forma de me queimar. Numa situação onde um homem cheio de experiência colonial - Sílvino Silvério Marques - tinha falhado, um Rosa Coutinho, mediante o seu ponto de vista colonial, não ia ter sucesso. Tive confirmação disso quando as forças de Spínola tentam liquidar-me, logo no dia 10 de Agosto, quando se dá a invasão do palácio, em Luanda. Só me salvei porque fui para a “cabeça do touro”. Mas a invasão realizou-se com a cooperação da Polícia de Segurança Pública que devia defender o palácio mas que abriu as portas aos manifestantes. Fiquei encurralado no palácio e, nessa altura, tive consciência de que tinha sido mandado para Angola para queimar».