• Em Portugal, a terra foi de quem a trabalhava

Campos de esperança

Gustavo Carneiro
O sonho milenar de tornar a terra propriedade de quem a trabalha teve realização em Portugal. Combatendo a sabotagem dos agrários, ocupando terras, organizando a produção, os operários agrícolas levaram avante aquela que foi, talvez, a maior das grandes conquistas revolucionárias de Abril, a Reforma Agrária: a terra que antes lhes roubava o vigor a troco de quase nada era agora sua, isto é, era trabalhada em benefício dos trabalhadores e do País! Mas esta, como todas as conquistas da Revolução portuguesa, não foi obra de decretos ou leis governamentais, antes nasceu e cresceu da acção decidida das massas e do seu partido de sempre, o PCP.
Poucas conquistas revolucionárias de Abril terão despertado tantas paixões como a Reforma Agrária. Dezenas de milhares de trabalhadores poderiam finalmente trabalhar a terra em seu benefício próprio, e do seu País. O que durante séculos foi um sonho, tornou-se realidade em menos de dois anos, nos campos do Sul de Portugal, no Alentejo e em parte do Ribatejo.
Do 25 de Abril de 1974 até 1976, mais de um milhão de hectares de terras cultiváveis ficaram livres de agrários e passaram a ser exploradas directamente pelos trabalhadores, organizados em mais de quatrocentas cooperativas e Unidades Colectivas de Produção (UCP). Um quinto da superfície agrícola do País passou para a posse do Estado e estava sem capitalistas nem patrões. E com estes, desapareceram também as humilhantes praças de jorna, os salários de miséria, a vida difícil.
Numa transformação desta envergadura, os resultados não podem ser medidos em números. Mas o seu sucesso é também quantitativo: na zona da Reforma Agrária, aumentaram os postos de trabalho; a área cultivada quase que multiplicou por dois; mais que duplicou a produção de cereais; o gado triplicou e o número de máquinas empregues na agricultura aumentou seis vezes (ver quadro). O nível de vida dos trabalhadores rurais, agora livres da exploração, aumentou. Criaram-se escolas, postos de saúde e os primeiros centros de dia para os mais velhos.
A agricultura não servia já apenas os interesses de alguns. Era de beneficiar todo um País que se tratava. Em Junho de 1975, estava-se em plena «batalha da produção» e os trabalhadores rurais estavam empenhados nela. «Não deixar um palmo de terra por cultivar» era o objectivo comum, como a reportagem do Avante! de 19 de Junho de 1975 ouviu da boca dos próprios trabalhadores, numa das muitas herdades colectivizadas. Como dizia o poeta Ary dos Santos, «é isto a reforma agrária/ em sua própria expressão:/ a maneira mais primária/ de que nós temos um quinhão/ da semente proletária/ da nossa Revolução».
Mas as paixões que a Reforma Agrária despertou não se limitaram aos seus obreiros, os trabalhadores do campo. De todo o País se organizavam excursões às cooperativas e UCP, de tanta e tanta gente que queria ver mais de perto aquilo que, pouco tempo antes, continuava a ser um sonho. E também para dar uma «mãozinha». Nos fins-de-semana e nas férias, muitas pessoas – operários fabris, trabalhadores ou estudantes – iam trabalhar no campo e conviver com aqueles homens e mulheres que souberam tomar nas suas mãos o seu próprio destino.

Sabotagens e indefinições

A Reforma Agrária fez-se por vontade e acção dos operários agrícolas alentejanos e ribatejanos e não por qualquer decreto ou lei governamental. Aliás, quando a lei da Reforma Agrária é publicada, em 29 de Julho de 1975, já os trabalhadores tinham ocupado e exploravam mais de meio milhão de hectares de terras. A lei apenas institucionalizara o que já era uma realidade incontestável e imparável, uma conquista de todo um povo contra a minoria exploradora que teimava em permanecer no Portugal de Abril.
Muitos dos governos provisórios, contando com revolucionários honestos e empenhados, como o General Vasco Gonçalves – o «companheiro Vasco» – e outros, debatiam-se com contradições internas. Alguns dos seus membros eram, mesmo sem o afirmarem, ferozes opositores da ocupação e exploração colectiva dos latifúndios. Como a história se encarregou de provar: à primeira oportunidade, PS e PSD promoveram a destruição da Reforma Agrária e a entrega das terras aos latifundiários.
Também as Forças Armadas, muitas vezes decisivas no apoio às ocupações, deram uma contribuição muito irregular. Se, em grande parte das vezes, apoiaram os trabalhadores, noutras apoiaram os agrários ou, simplesmente, assistiam impavidamente às violências exercidas sobre os operários.
As violências e arbitrariedades cometidas pelos latifundiários também jogaram o seu papel no acelerar do processo. Com o derrubamento do fascismo, perderam o seu poder repressivo. Os trabalhadores organizam-se exigem contratos colectivos de trabalho – definindo mínimos salariais, jornadas e condições de trabalho, etc. – que em grande parte dos casos conquistam. Os agrários reagem ao crescimento da luta e iniciam o abandono das terras e as acções de sabotagem, deixando morrer animais ou queimando searas.
À já sólida consciência política e de classe do proletariado agrícola, que defendia a Reforma Agrária, juntava-se a necessidade de salvar a produção e o emprego. Começam as primeiras ocupações, ainda em 1974, de algumas terras abandonadas. A luta nos campos não parava e a Revolução também não. Com o 11 de Março e a vitória sobre as forças reaccionárias, dá-se um novo impulso nas ocupações, que seria ainda aumentado após a publicação da lei da Reforma Agrária, poucos meses depois.

Semear um sonho para colher a realidade

A luta pela terra é uma das mais antigas expressões da luta de classes. Desde tempos imemoriais que multidões de trabalhadores rurais ocupam terrenos, apesar da repressão a que estavam sujeitos, movidos apenas pela vontade de trabalhar e produzir para se alimentarem a si e aos seus. E ainda hoje, em muitos países, se luta pela repartição ou colectivização da terra, como no Brasil ou em diversos países africanos.
Também em Portugal, esse sonho é antigo. Mas no Portugal fascista ganhou uma nova actualidade, tal era a brutalidade da exploração a que os trabalhadores estavam sujeitos. Estes, nos combates de classe travados na praça de jorna com os capatazes, foram adquirindo uma sólida consciência da sua condição de proletários, despojados de qualquer terra que fosse sua. E o sonho foi-se transformando em projecto e o projecto em luta.
A quase totalidade dos que trabalhavam nos campos do Sul do País eram, nessa altura, operários agrícolas: mais de 85 por cento em Beja, Setúbal e Portalegre e em numerosos concelhos dos distritos de Santarém e Castelo Branco, mais de 90 por cento no distrito de Évora e nos concelhos de Alpiarça e Coruche. Ou seja, em muitas destas zonas, eram dez vezes mais do que os pequenos agricultores. Mesmo assim, a classe de vanguarda da Reforma Agrária, o proletariado rural, conseguiu atrair para a sua causa estes pequenos proprietários, que também tinham sido esmagados pelos latifundiários.
Uma parte significativa da geração que fez a Reforma Agrária tinha já grande experiência de luta contra os latifundiários e o fascismo. Momento maior dessa luta foi a conquista, em 1962, da jornada diária de oito horas de trabalho.
Apesar da violenta repressão que sobre eles se abateu, os trabalhadores conseguiram impôr aos agrários a jornada de oito horas, contra o desumano trabalho «de sol a sol». Mas o combate no campo vinha de trás, e deixou mártires, de que é exemplo maior, mas não único, Catarina Eufémia, assassinada pela GNR aos 29 anos, com um filho no ventre e segurando outro no colo.
A luta dos trabalhadores não cessou, até alcançaram aquilo a que tinham direito e a que as gerações que os precederam sonhavam: terra para trabalhar. Mas a Reforma Agrária portuguesa foi, como Revolução que lhe abriu as portas, original. Não foi uma reforma agrária de camponeses, mas do proletariado agrícola, que trabalhava em conjunto uma terra que era de todos. Uma Reforma Agrária num País que caminhava, a passos largos, para o Socialismo.

Sem o PCP não teria havido Reforma Agrária
O camarada de sempre!

Não é exagero dizer que sem o PCP, sem a intervenção dedicada de gerações de comunistas, não teria havido Reforma Agrária em Portugal. Defensor deste importante avanço revolucionário desde longa data (com formulação teórica desde 1964, no relatório de Álvaro Cunhal ao VI Congresso do Partido, intitulado «Rumo à Vitória»), o PCP foi também o seu principal dinamizador, nos campos do Sul do País, como já o havia sido de todas as outras conquistas destes trabalhadores ao longo da ditadura fascista.
Quando rebenta a Revolução, são os comunistas os que, organizadamente, promovem a criação dos sindicatos agrícolas e pugnam pelos contratos colectivos. São também os militantes do PCP – que não pararam de aumentar nos primeiros anos da Reforma Agrária – os que dinamizam a ocupação das terras abandonadas e incultas. Foi também por iniciativa do PCP que se realizaram, por todo o País, encontros de agricultores e trabalhadores agrícolas para fomentar a unidade, o que veio a acontecer na maior parte dos casos.
Se é verdade que as teorizações do PCP tiveram grande importância na Reforma Agrária portuguesa, não o é menos afirmar que a Reforma Agrária portuguesa foi obra dos trabalhadores rurais (muitos deles comunistas) que, no terreno, construíram uma forma de exploração da terra original e única, diferente – e mais avançada – que a mais avançada das teorizações até então realizadas. A libertação dos trabalhadores foi, como previra Marx, obra dos próprios trabalhadores…


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