10 palavras revolucionárias que definem os espectáculos
Para este texto poderia haver uma discutível abordagem, ao estilo “crítico musical”, para concluir: foi o melhor conjunto de espectáculos dos últimos anos na Atalaia. Mas há coisas para dizer, bem mais importantes do que isso.
Camaradagem
O público salva, domingo, o espectáculo de Silvia Perez Cruz. Ela entra titubeante, aparentemente intimidada por uma massa de gente a perder de vista. Mas é o carinho, o amparo da multidão que faz sair desta grande cantora, deste animal de palco, um dos grandes espectáculos da sua vida e um dos melhores espectáculos desta Festa. Que noite!
Manuela Azevedo, já perto da 1h30 de sábado, olha para a plateia, cheia como um ovo, admirada: “Como estão aqui há tantas horas a ver tantos concertos?”. A vocalista dos Clã trouxe a esta enorme comunidade dois convidados especiais: Bruno Nogueira e Samuel Úria. Em trio cantaram um clássico de Roberto Carlos. O espectáculo de encerramento de sábado correspondeu, direitinho, à definição que Manuela Azevedo deu em palco: «Esta é uma Festa muito especial, com muitas memórias mas também com muito futuro».
Liberdade
As miúdas que fazem as Anarchicks cantam: We Claim the Right – o direito à liberdade é quase um monotema nestas canções.
A Quinta do Bill sublinha «Liberdade é preciso».
O Cais Sodré Funk Connection dá vivas à Revolução dos Cravos.
O Last Internacionale recria Vampiros de José Afonso.
A liberdade na Festa do Avante!, a liberdade das ideias, dos discursos, das opiniões, dos modos de vida, dos pensamentos, das opções sexuais, das tatuagens, das roupas, da sensibilidade, dos sonhos individuais, transborda para além das centenas de milhares de pessoas que andam pela Atalaia e está, também, no ADN dos espectáculos do Palco 25 de Abril.
Luta
«Obrigado @festadoavante, for all your energy and revolutionary spirit. We will never forget last night. Não há festa como esta! Até à próxima!». Esta a mensagem que podemos ler, hoje, na página de facebook do TheLast Internacionale, a acompanhar uma fotografia do duo, frente à reprodução de um quadro de Álvaro Cunhal sobre lutas camponesas.
Igualdade
Os Moonspell publicaram na sua página de facebook uma foto de uma velhota a beijar o baterista do grupo, durante uma sessão de autógrafos. E escreveram o seguinte: «Na @festadoavante não há lugar para o preconceito. És metaleiro, toma lá um beijo».
Diversidade
Silvia Perez Cruz canta em catalão, espanhol, inglês e português. Vai do fado de Estranha Forma de Vida à pop de Sounds of Silence, passando por um reportório exemplar de canções originais: todos se encantam com um tema sobre o pai da artista, que ela dedica à irmã, Glória, residente em Monsarraz, no Alentejo.
O Canções de Roda, com o Coro Infantil da Academia de Música de Almada, agarra o público com músicas infantis que todos conhecem. Depois passa para coisas mais adultas e recorda êxitos dos seus vocalistas: Ana Bacalhau, Jorge Benvinda, Sérgio Godinho e Vitorino. E quando o coro infantil canta José Afonso, há lágrimas no público.
«O mar não é de ninguém/Ninguém é dono do mar/Nem daqueles que sabem navegar» são versos da corrente de canções ecologistas que a Quadrilha, liderada por Sebastião Antunes, trouxe ao Palco 25 de Abril.
O vocalista dos Blind Zero, Miguel Guedes, diz ao público da Festa, depois de cantar o refrão de People Have The Power (Pati Smith): «é tão bom estar numa festa como esta, que faz tanta falta» e ergue o punho.
O Zorg tenta estilhaçar o céu com guitarras eléctricas enlouquecidas, a contar uma história alienígena de algum desespero: «Há dias que só quero fugir/há dias que só quero calar», canta.
The Spill dá-nos um som agressivo e competente, com uma incomum formação de duas baterias, sete músicos e uma vocalista que realiza um sonho: «Há 18 anos vim a esta festa pela primeira vez, tinha 13 anos, e sempre desejei vir um dia a este palco. Obrigado».
O mote é semelhante ao do vocalista do Fast Eddie Nelson: «Decidi ser músico frente a este palco, a ver um concerto dos Peste e Sida». A seguir, Nelson Oliveira convida a entrar em cena João San Payo (Peste e Sida), além de outros músicos: Vítor Bacalhau, Frankie Chavez e Scúru Fitchadu, que não se aguenta e grita ao microfone: «25 de Abril sempre, motherfuckers!».
Como é que num único palco conseguem passar tanta coisa tão diferente?...
Trabalho
Na parede da régie nos bastidores do palco 25 de Abril, onde tudo se coordena, está um texto de Ruben de Carvalho que começa assim: «o trabalho voluntário é, desde a primeira edição, um pilar em que assenta todo o esforço da Festa do Avante!. Ao mesmo tempo, é também um forte traço que marca todo o ambiente de alegria e fraternidade, característico da maior iniciativa político cultural de massas que desde 1976 tem lugar no nosso país». O trabalho é um bilhete de identidade da Festa e é um bilhete de identidade dos Moonspell, metaleiros que nos dão um espectáculo de nível superior. Um dos grandes momentos desta edição e um momento histórico na programação do evento. Nem faltou uma versão da Carvalhesa, hino da CDU e da Festa, em modo heavy metal!
Paz
Haverá muitos festivais de música em que um artista possa descer do palco, entre pela plateia de dezenas de milhar de pessoas dentro, cante uma ou duas canções no meio da multidão e regresse ao palco para continuar o espectáculo, sem que com isso crie uma dor de cabeça aos seguranças? Talvez haja, mas na Atalaia, este ano, aconteceu duas vezes, como se fosse banalidade – tudo em paz, todos a usufruir.
Primeiro é com a incrível vocalista/baixista do TheLast Internacionale. Delila Paz (que nome!), rodeada de pessoas que a filmam e a fotografam com os seus telemóveis. Diz, em inglês, estas palavras: «tu precisas de lutar pelo amor, pela tua vida, por tudo».
Aconteceu também com Throes+The Shine: vestidos de branco imaculado, esta é uma banda que sabe fazer uma festa e põe toda a gente a dançar a sua volta. Mod Dedaldino, o vocalista, percebeu bem onde estava e, domingo à tarde, aproveitou, tal como Papillon, outro bicho de palco da zona do hip hop, que, na véspera, entre duas músicas dançantes, explicou o que é o Avante!: «Um festival que representa valores humanos muito importantes», disse.
Partilha
A multidão canta inúmeras vezes com os artistas – há canções que já não têm dono, são partilhadas entre criadores e público. A Quinta do Bill conquista dois encores, depois de um espectáculo avassalador, terminado com um coro gigantesco, arena repleta, para Filhos da Nação.
O Expensive Soul coloca, em direto, na sua página do facebook, um vídeo a mostrar dezenas de milhar de telemóveis acesos, a brilhar na noite, apontados, a pedido da banda, para a plateia. O efeito é lindo, mas é mais do que isso: comunica a relação íntima que a banda, esbanjadora de talento e competência, consegue criar com a audiência. Que grande espectáculo de encerramento!
Memória
A memória é a herança com que moldamos o futuro. Ruben de Carvalho, falecido a 10 de julho passado, deixou um impressionante legado: uma ideia teórica de programação cultural que se expressou, na prática, 43 vezes, tantas quantas as sucessivas edições da Festa do “Avante!” que ajudou a criar. Não o esquecem.
«Saudades de Ruben Carvalho, que sempre nos recebeu tão bem, um grande dinamizador da cultura em Portugal» (Quinta do Bill).
«Foi ele quem nos valorizou» (Cais Sodré Funk Connection).
«Quero agradecer ao Ruben e à Madalena por terem trazido, pela primeira vez, os Moonspell à Festa» (Moonspell).
«Nós estamos aqui hoje por causa dele» (Expensive Soul).
Fast Eddie Nelson dedica a Ruben uma versão do Cantar de Emigração, um clássico de Adriano Correia de Oliveira dominado pelo verso Este Parte, Aquele Parte.
Homenagens simples, directas, francas, sem formalismos, sem programa, sem blá blá blá, como deve ser entre amigos e camaradas.
Organização
A organização é o coração que bombeia o sangue do colectivo do PCP. Nos bastidores do Palco 25 de Abril, como em todas as estruturas locais e centrais do partido, mobilizam-se militantes para garantir o funcionamento da Festa do Avante! No caso do maior palco da Festa trabalham dezenas de camaradas e amigos numa enorme operação logística que abrange também a gestão do que acontece no auditório 1.º de Maio. A estes camaradas juntam-se largas equipas de técnicos especializados em som e vídeo. É muita gente e muita coisa para fazer: refeições, transportes, camarins, limpeza, decoração, infraestruturas, sinalética, controlo de entradas e saídas, alinhamento dos espectáculos, guiões, montagem e desmontagem de equipamentos, testes de som, filmagem em vídeo, relação com os agentes, ramos de cravos vermelhos para as artistas, controlo de execução da programação e da qualidade de todo o processo fazem parte de uma gigantesca lista de tarefas. Uf!... Para o ano há mais.