Censura e luta
A indignação e o descontentamento que grassam pelo País adquiriu sexta-feira no Parlamento uma dimensão política única através da moção de censura com a qual o PCP confrontou o Governo com a sua política anti-social e antipatriótica.
Governo agrava problemas do País
Ao hemiciclo, pela voz dos deputados comunistas, chegou o sentimento que hoje percorre, veloz, a mente de um número crescente de portugueses. O sentimento de rejeição por uma política que «agrava as injustiças e as desigualdades» e que é «sentido pelos trabalhadores e por diversos sectores e camadas antimonopolistas», como sublinhou o Secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa.
No momento da votação, ao lado da bancada do PCP, votaram o PEV e o BE, optando PSD e CDS/PP pela abstenção. Só o PS esteve contra, o suficiente para inviabilizar a iniciativa do PCP.
Nada, porém, que diminua o extraordinário alcance político, a justeza ou o carácter oportuno desta acção decidida no início da passada semana pelo Comité Central.
Vários foram, com efeito, os seus méritos, um dos quais, desde logo, foi o de clarificar o posicionamento e a responsabilidade das diferentes forças politicas perante a política de ruína nacional conduzida pelo Governo PS. Tratava-se de saber, como salientou o líder parlamentar do PCP, «entre quem está com esta política de direita (seja no Governo e na oposição) e quem combate este rumo de desastre; entre quem não se conforma com as injustiças e os que as promovem; entre os que defendem os interesses do País e os que aceitam as chantagens dos “mercados”; entre os que assumem os anseios dos trabalhadores e os que assumem os desígnios do grande capital; entre os que escolhem dar resposta às necessidades do povo e os que preferem as imposições da União Europeia».
E perante esta grelha não foi difícil perceber que o PSD e o CDS/PP - descontando as falsas divergências em questões acessórias com que sempre mascaram as suas verdadeiras opções -, não só estão de alma e coração com esta política de direita, como, sempre que há algum sobressalto - ainda há bem poucos meses assim sucedeu com o Orçamento o Estado -, são o seu melhor seguro de vida, garantindo a satisfação dos interesses do capital financeiro e dos grandes grupos económicos.
Isso mesmo voltou a ficar patente neste debate em que se assistiu ao penoso exercício de um PSD preocupado em desviar as atenções para a «alta velocidade» e desta forma procurar disfarçar o seu apoio ao Governo e à sua política.
Bernardino Soares não deixou passar o facto em claro, assinalando que o partido liderado por Passos Coelho bem gostaria que passasse despercebido o seu efectivo acordo com o Governo na tentativa de baixar os salários, nos cortes nos subsídios e prestações sociais, nas privatizações, no roubo fiscal dos salários ou nos aumentos dos bens essenciais. Só que está de acordo e, por isso, para o PCP, é corresponsável por tais medidas.
Na luta está o caminho
Outra ideia fundamental a reter desta iniciativa do PCP é a de que a sua realização e o seu efeito político não se esgotou no estrito quadro parlamentar. Bem pelo contrário, insere-se num processo onde interagem de forma dinâmica múltiplas forças sociais, em contínua evolução, processo esse que tem na luta de massas a sua marca mais forte, uma luta que promete continuar, com redobrado vigor.
Essa foi de resto, uma garantia deixada pelo Secretário-geral do PCP que, logo no arranque do debate, interpelando o primeiro-ministro, assegurou a este que nem os trabalhadores nem o povo baixarão os braços, podendo contar, por isso, com a continuação da «censura e da luta».
Jerónimo de Sousa reagia assim ao que considerou ser a «chantagem» que está a ser exercida sobre o povo «para que se conforme, para que não lute, não proteste, não mostre a sua indignação».
Testemunhos dessa coação estiveram, aliás, bem presentes no próprio debate por via de argumentos tendentes a falsear e condicionar posições adversárias como alguns daqueles a que recorreu o primeiro-ministro e seus acólitos.
Ouviu-se dizer da boca do primeiro-ministro e de outros responsáveis do PS, por exemplo, que a apresentação da moção de censura correspondeu a um gesto de «irresponsabilidade», comportaria um grave factor de «instabilidade» e, se aprovada, teria significado «acrescentar crise política à crise financeira».
À falácia respondeu de forma firme e combativa a bancada comunista, lembrando que o único factor de instabilidade existente, esse sim, é a política do Governo PS, e que irresponsável seria ficar passivo perante uma política de desastre nacional.
Derrotar ofensiva
Mas se a moção de censura incomodou visivelmente o Governo e a bancada do PS, afirmando-se como expressão da resistência popular contra a política de direita e de quem não se resigna perante a brutal ofensiva em curso – e daí também o seu carácter oportuno -, este instrumento constitucional e regimental teve ainda o mérito de pôr em evidência a importância decisiva de erigir uma ampla frente social capaz de travar os desígnios dos grandes grupos económicos e derrotar esta política.
É que – e por isso esta foi também uma iniciativa indispensável - , como advertiu Bernardino Soares, «a gula do grande capital e a submissão do Governo e do PSD não têm limites» e «já se percebeu que as medidas contra os direitos, contra os salários, contra as reformas, contra o investimento e o desenvolvimento, contra os serviços públicos vão continuar, a não ser que encontrem uma forte resposta de todos os portugueses».
A voz do protesto
Ora foi neste quadro que a moção de censura do PCP deu voz no Parlamento ao justo protesto e à luta dos trabalhadores e das populações perante novas medidas que agravarão ainda mais as condições de vida e os problemas do País: roubo dos salários, corte nas prestações sociais, corte no investimento público, entre várias outras.
Vozes incómodas, as dos deputados comunistas, a lembrar, entre outras realidades, que Portugal é um país que está a divergir há quase dez anos da União Europeia, um país com 730 mil desempregados e mais de um milhão de precários, onde os direitos dos trabalhadores são atacados, os salários e pensões são desvalorizados, onde as desigualdades crescem a um ritmo vertiginoso, um país em recessão ou estagnação, onde o investimento público diminuiu drasticamente, que vê o seu aparelho produtivo em contínuo processo de liquidação, onde os serviços públicos e a administração pública se deterioram a cada dia que passa.
Contradições
Foi este panorama, pois, que o PS não foi capaz de desmentir ou rebater no debate. Francisco Assis, seu líder parlamentar, no seu tom eloquente, ainda se esforçou em rasgados elogios à governação. O problema, porém, como observou o presidente da formação comunista, é que aquele discurso apologético do deputado do PS «choca com a realidade». «Não se percebe que sucesso é esse quando temos o maior desemprego da história da democracia, quando temos o País a divergir da União Europeia ou quando temos a maior precariedade de sempre», observou, com uma ponta de ironia, Bernardino Soares.
Não deixou de ser sintomático, aliás, o modo atabalhoado como as bancadas do PS e do Governo interpretaram a iniciativa do PCP. E ficou sobretudo evidente o que o deputado comunista António Filipe classificou de «contradição insanável» no discurso do PS e do Governo.
É que enquanto para o líder da bancada parlamentar Francisco Assis a moção de censura foi «cínica» porque, em sua opinião, o PCP «não pretendia fazer cair o Governo», esperando que o PSD o segurasse com a abstenção, já para o primeiro-ministro a moção foi «irresponsável» porque o PCP pretendia «fazer cair o Governo».
Esta falta de consonância, indesmentível sinal de desorientação, tornou-se de resto extensível a outras matérias que têm vindo a lume e que chegaram também ao debate, como a relativa às taxas do IRS para 2010, em que se assistiu a um secretário de Estado a dizer uma coisa, vir o primeiro-ministro e dizer outra e, posteriormente, vir um despacho desmentir ambos.
Mas a moção de censura teve ainda um outro mérito não menos importante que foi o de mostrar que existe uma política alternativa e, acima de tudo, que é pela luta dos trabalhadores e do povo – como se verá já no próximo sábado, 29 – que essa mudança de rumo ocorrerá, abrindo caminho a uma vida melhor, através de uma «política patriótica e de esquerda».