Fome e negócios

Jorge Cadima

O capitalismo está a devorar seres humanos para encher depósitos de carburante

Multiplicam-se as notícias sobre uma forte alta no preço dos cereais e dos produtos alimentares em geral, e sobre os seus efeitos trágicos. Em Dezembro, o Director da FAO (Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura) considerou que a subida de preços «ameaça a segurança alimentar de milhões de pessoas» (Granma, 18.12.07). Há três semanas, a Directora do Programa Alimentar Mundial (WFP) afirmou que enfrentam sérias dificuldades: todas as semanas tem de desembolsar alguns milhões de dólares adicionais (Financial Times, 24.2.08). «A nossa capacidade de chegar às pessoas está a diminuir, ao mesmo tempo que as suas necessidades estão a aumentar. [...] A fome tem uma nova face: existe comida nas prateleiras, mas os preços impedem as pessoas de lhe ter acesso. [...]. Há distúrbios provocados pela fome em locais onde tal não acontecia» (Guardian, 26.2.08). O mesmo jornal exemplifica que já ocorreram «em Marrocos, no Iémene, no México, na Guiné [Conacri], na Mauritânia, no Senegal e no Uzbequistão». Em Portugal, a indústria panificadora quer aumentar os preços do pão em 50%.

O que se passa? A generalidade da comunicação social fala em alterações climáticas, aumentos de procura, especulações e secas. Mas a sempre bem informada revista Economist (8.12.08) refere factos dignos de registo. «O mais impressionante neste surto de “agflação” é que os preços recorde se verifica, não num momento de escassez, mas num momento de abundância. [...] A produção [mundial] de cereais será [em 2007] de 1660 milhões de toneladas, a maior alguma vez registada e superior em 89 milhões à do ano passado, outro ano de produção abundante». A revista considera que a razão principal da escalada de preços é «o aumento galopante da procura de etanol como combustível para os carros americanos. [...] É responsável pelo aumento do preço do milho porque o Governo federal entrou no mercado para, na prática, absorver um terço da colheita de milho dos EUA.[...] Os agricultores americanos, desejosos de beneficiar com a bonança dos bio-carburantes, generalizaram o cultivo do milho, semeando terras antes dedicadas ao trigo ou à soja. [...] As exigências do programa de etanol dos EUA correspondem, por si só, a mais de metade das necessidades mundiais em cereais não correspondidas. Sem esse programa, o preço da comida não estaria a aumentar desta forma». E informa ainda que «a quantidade de cereais necessários para encher o depósito de um SUV chegaria para alimentar uma pessoa durante um ano». Mas a revista da City de Londres coíbe-se de fazer um reconhecimento de elementar justiça: o primeiro dirigente a advertir pormenorizadamente contra as consequências catastróficas deste programa de subsídios do Governo dos EUA foi Fidel Castro, há um ano, nas suas reflexões no jornal Granma (29.3.07). Comentava a reunião que acabava de ter lugar na Casa Branca entre Bush e os principais dirigentes da indústria automóvel americana: «a ideia sinistra de converter comida em combustíveis ficou definitivamente assente como orientação económica dos EUA».

Tudo isto, para sustentar lucros obscenos e níveis escandalosos de desperdício energético e consumista na citadela do capitalismo mundial. O capitalismo dos nossos dias, cada vez mais mortífero e podre, está, qual monstro de Goya, a devorar seres humanos para encher depósitos de carburante.


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