Lutar e resistir nos anos difíceis
Nasceu a 1 de Fevereiro de 1908 Miguel Wager Russell, dirigente do PCP nos anos 30 e prisioneiro durante nove anos no Campo de Concentração do Tarrafal.
Miguel Russell exerceu altas responsabilidades no Partido em 1935 e 1936
O nome de Miguel Wager Russell pode não ser familiar para muitos. Assim como o não será o período da história do País e do Partido em que desenvolveu a sua actividade revolucionária e assumiu altas responsabilidades na direcção do PCP.
Estava-se na década de 30 e o fascismo avançava no País e em quase toda a Europa com violência arrebatadora. O golpe militar de 28 de Maio de 1926 desferira um rude golpe no jovem e pouco preparado Partido Comunista e apanhara o movimento operário, dominado então por teorias e práticas anarco-sindicalistas, pouco preocupado com a ascensão do fascismo.
Como escreveu Bento Gonçalves em Palavras Necessárias, em 28 de Maio de 1926, «o proletariado assistia pelo País às paradas que o Exército fazia»(1). A actividade do Partido, criado apenas cinco anos antes, retraiu-se e, desde o golpe até 1927, «a actividade comunista não era notada porque, na realidade, não existia»(2).
Foi com a reorganização de 1929, dinamizada por Bento Gonçalves, que o Partido se transformou numa organização revolucionária marxista-leninista. Os avanços não se fizeram esperar. O mesmo Bento Gonçalves escreveria mais tarde que desde essa altura «obtivemos progressos consideráveis»(3). Em 1933, a tendência sindical comunista era já maioritária e o novo órgão central do Partido, o Avante!, saía em 1935 com periodicidade mensal. Lutas de massas despontavam pelo País. Mas, realçou, «o nosso Partido tem ainda grandes debilidades»(4).
Primeiros passos
Foi a este Partido que Miguel Wager Russell aderiu em 1931. No ano anterior, entrara já para a Secção Portuguesa do Socorro Vermelho Internacional (SVI), uma organização unitária que tinha como objectivo denunciar e combater a repressão fascista sobre comunistas e militantes do movimento operário. Nesse ano passara também um breve período na prisão.
É já como dirigente da Secção Portuguesa do SVI que, em 1932, passou à clandestinidade. A captura de outros elementos da organização e a perseguição movida pela polícia ao SVI precipitaram esta necessidade.
Em Novembro desse ano, sai de Portugal e viaja até à União Soviética, para participar como delegado no I Congresso Mundial do Socorro Vermelho Internacional. Após o Congresso permanece naquele país mais alguns meses.
Antes de reentrar em Portugal, em meados de 1933, encontrou-se em Espanha com o secretário-geral do Partido, Bento Gonçalves, que lá mantinha encontros com o Partido Comunista de Espanha.
Em 1934, vai a França pedir apoio para a Secção Portuguesa do SVI. O esmagamento da revolta de 18 de Janeiro desse ano provocara um grande aumento do número de presos políticos e havia que organizar o auxílio jurídico e material aos presos e suas famílias.
O objectivo da viagem era tentar junto da secção francesa, que gozava de uma situação de legalidade, que se denunciasse a situação em Portugal e conseguir alguns apoios. Em parte, estes objectivos foram cumpridos.
Por toda a Europa, o fascismo e o nazismo faziam já milhares de presos e de refugiados. O Socorro Vermelho Internacional intensificava a sua actividade a aumentava o seu prestígio. Mas o fascismo avançava.
Dirigente do Partido
Os próximos tempos seriam difíceis para o Partido. A repressão intensifica-se e, em finais de 1935, o Secretariado do Partido cai nas mãos da polícia política, a PVDE: Bento Gonçalves, Júlio Fogaça e José de Sousa são presos. Tal como os outros dois, Bento Gonçalves é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, de onde não sairá com vida.
No mês seguinte, Miguel Wager Russell integra o Secretariado provisório do Partido, juntamente com Manuel Rodrigues da Silva. É nessa altura que assume a responsabilidade pela Organização Revolucionária da Armada.
Com os elementos mais experimentados na prisão e com a repressão a assestar duros golpes no Partido, os comunistas que ficaram em liberdade não têm a vida facilitada. Em Fevereiro de 1936, Miguel Russell viaja até à capital espanhola para se encontrar com Francisco Paula de Oliveira, conhecido como «Pável», que na altura desempenhava a função de delegado do PCP junto da Internacional Comunista.
Dois meses depois, Russell participa numa reunião de quadros dirigentes do Partido que decide constituir um Comité Central e que elege para o Secretariado Alberto Araújo, Manuel Rodrigues da Silva e «Pável». Mas também estes seriam presos pouco depois.
No ano seguinte, em Abril, é reconhecido na rua por um inspector da PVDE e capturado. Depois de uma passagem pelo Aljube, embarca, em meados de 1937, no navio Lourenço Marques rumo ao Campo de Concentração do Tarrafal.
Libertado nove anos depois, funda as Edições Claridade. Mas a PIDE faria abortar o projecto. Vai viver para Moçambique, onde se mantém activo nos meios antifascistas. Regressa após o 25 de Abril, tendo dirigido o jornal da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses. Morreu em 1992.
Nove anos no Tarrafal
Miguel Wager Russell integrou o segundo grupo de prisioneiros a chegar ao Campo de Concentração do Tarrafal. Embarcou no Lourenço Marques no início de Junho de 1937, tendo chegado ao campo em meados do mesmo mês.
O seu livro de memórias Recordações dos Anos Difíceis (publicado pelas Edições Avante!, em 1976), constitui um vivo testemunho da violência fascista e da resistência. Conta Russell que ainda nas prisões do continente, aquando dos interrogatórios, se recusou a responder a quaisquer perguntas sobre nomes e moradas de camaradas. Foi então que «todo aquele bando me caiu em cima, agredindo-me sem parança. Somente quando o sangue escorria, abundante, pela cara, me levavam à casa de banho, para que me lavasse. De regresso à sala, recomeçavam as agressões de mistura com as mesmas perguntas»(5).
No final do interminável interrogatório, «já não conseguia levantar-me do chão, mas nem por isso cessavam os pontapés, as cacetadas e os bofetões enquanto me punham de pé».(6)
Já no famigerado «Campo da Morte Lenta», as violências físicas e psíquicas aumentavam. Água de má qualidade, doença, trabalhos forçados, agressões e torturas várias constituíam o dia-a-dia dos presos do Tarrafal.
Na «frigideira», conta, «dormíamos no chão, onde houvera o “cuidado” de espalhar areia da praia que se nos cravava na pele. Bastavam três presos castigados na mesma cela para caírem do tecto, como chuva, as gotas de água condensadas da respiração. Íamos para o castigo descalços e sem cintos, e o nosso primeiro acto, ao fechar-se a porta sobre nós, era o de nos pormos nus. O calor era atroz»(7).
No Tarrafal, o fascismo ceifou a vida a 32 antifascistas. Entre eles, o secretário-geral do Partido, Bento Gonçalves. Miguel Russell conta que «fazíamos veladas de uma hora por turnos sucessivos de todos os presos e de todos os cárceres, durante o dia e pela noite adiante». «Em dezenas de ocasiões ali estivéramos como agora, prestando as últimas homenagens aos nossos mortos», prosseguiu(8).
Outros presos não morreram no campo, tendo sido «libertados» para morrer pouco depois. Foi o caso de Alberto Araújo, recorda no seu livro. Este militante comunista, «doente e fraco, já estivera internado anos antes, durante longo período, no Sanatório do Caramulo. O director e o médico, que não ignoravam o caso, pretendiam vergar aquele nosso camarada, justamente considerado elemento de grande prestígio entre nós»(9). Recorda Russell que «os maus tratos (viveu dez meses incomunicável, na metrópole, após a prisão), o desterro, os trabalhos forçados e a ausência de cuidados médicos apropriados abreviaram-lhe a vida»(10).
O dia da libertação, devido a uma amnistia «forçada» pela derrota do nazifascismo na Guerra, é recordado com emoção no final da obra. «À medida que o navio se aproximava do cais de Alcântara, onde atracaria, íamos distinguindo uma massa enorme de gente que nos acenava. Milhares de pessoas haviam acorrido ao cais mobilizadas pelas organizações antifascistas para nos saudarem (…) Os gritos, os abraços, as lágrimas dos familiares e conhecidos que nos recebiam de braços abertos geravam uma maravilhosa balbúrdia.» (11)
___________
(1) Bento Gonçalves, «Palavras Necessárias», in Os comunistas, p 111.
(2) Idem, ibidem.
(3) Idem, in «Relatório apresentado ao Congresso da Internacional Comunista (1935), in Os comunistas, p.114.
(4) Idem, in «Relatório apresentado ao Congresso da Internacional Comunista (1935), in Os comunistas, p.115.
(5)Miguel Wager Russell, Recordações dos Anos Difíceis, Lisboa, Edições Avante!, 1976. p. 22.
(6) Idem, ibidem.
(7) Idem, ibidem, p. 63.
(8) Idem, ibidem, p. 115.
(9) Idem, ibidem, p. 79.
(10) Idem, ibidem, p. 80.
(11)Idem, ibidem, p. 132.
Estava-se na década de 30 e o fascismo avançava no País e em quase toda a Europa com violência arrebatadora. O golpe militar de 28 de Maio de 1926 desferira um rude golpe no jovem e pouco preparado Partido Comunista e apanhara o movimento operário, dominado então por teorias e práticas anarco-sindicalistas, pouco preocupado com a ascensão do fascismo.
Como escreveu Bento Gonçalves em Palavras Necessárias, em 28 de Maio de 1926, «o proletariado assistia pelo País às paradas que o Exército fazia»(1). A actividade do Partido, criado apenas cinco anos antes, retraiu-se e, desde o golpe até 1927, «a actividade comunista não era notada porque, na realidade, não existia»(2).
Foi com a reorganização de 1929, dinamizada por Bento Gonçalves, que o Partido se transformou numa organização revolucionária marxista-leninista. Os avanços não se fizeram esperar. O mesmo Bento Gonçalves escreveria mais tarde que desde essa altura «obtivemos progressos consideráveis»(3). Em 1933, a tendência sindical comunista era já maioritária e o novo órgão central do Partido, o Avante!, saía em 1935 com periodicidade mensal. Lutas de massas despontavam pelo País. Mas, realçou, «o nosso Partido tem ainda grandes debilidades»(4).
Primeiros passos
Foi a este Partido que Miguel Wager Russell aderiu em 1931. No ano anterior, entrara já para a Secção Portuguesa do Socorro Vermelho Internacional (SVI), uma organização unitária que tinha como objectivo denunciar e combater a repressão fascista sobre comunistas e militantes do movimento operário. Nesse ano passara também um breve período na prisão.
É já como dirigente da Secção Portuguesa do SVI que, em 1932, passou à clandestinidade. A captura de outros elementos da organização e a perseguição movida pela polícia ao SVI precipitaram esta necessidade.
Em Novembro desse ano, sai de Portugal e viaja até à União Soviética, para participar como delegado no I Congresso Mundial do Socorro Vermelho Internacional. Após o Congresso permanece naquele país mais alguns meses.
Antes de reentrar em Portugal, em meados de 1933, encontrou-se em Espanha com o secretário-geral do Partido, Bento Gonçalves, que lá mantinha encontros com o Partido Comunista de Espanha.
Em 1934, vai a França pedir apoio para a Secção Portuguesa do SVI. O esmagamento da revolta de 18 de Janeiro desse ano provocara um grande aumento do número de presos políticos e havia que organizar o auxílio jurídico e material aos presos e suas famílias.
O objectivo da viagem era tentar junto da secção francesa, que gozava de uma situação de legalidade, que se denunciasse a situação em Portugal e conseguir alguns apoios. Em parte, estes objectivos foram cumpridos.
Por toda a Europa, o fascismo e o nazismo faziam já milhares de presos e de refugiados. O Socorro Vermelho Internacional intensificava a sua actividade a aumentava o seu prestígio. Mas o fascismo avançava.
Dirigente do Partido
Os próximos tempos seriam difíceis para o Partido. A repressão intensifica-se e, em finais de 1935, o Secretariado do Partido cai nas mãos da polícia política, a PVDE: Bento Gonçalves, Júlio Fogaça e José de Sousa são presos. Tal como os outros dois, Bento Gonçalves é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, de onde não sairá com vida.
No mês seguinte, Miguel Wager Russell integra o Secretariado provisório do Partido, juntamente com Manuel Rodrigues da Silva. É nessa altura que assume a responsabilidade pela Organização Revolucionária da Armada.
Com os elementos mais experimentados na prisão e com a repressão a assestar duros golpes no Partido, os comunistas que ficaram em liberdade não têm a vida facilitada. Em Fevereiro de 1936, Miguel Russell viaja até à capital espanhola para se encontrar com Francisco Paula de Oliveira, conhecido como «Pável», que na altura desempenhava a função de delegado do PCP junto da Internacional Comunista.
Dois meses depois, Russell participa numa reunião de quadros dirigentes do Partido que decide constituir um Comité Central e que elege para o Secretariado Alberto Araújo, Manuel Rodrigues da Silva e «Pável». Mas também estes seriam presos pouco depois.
No ano seguinte, em Abril, é reconhecido na rua por um inspector da PVDE e capturado. Depois de uma passagem pelo Aljube, embarca, em meados de 1937, no navio Lourenço Marques rumo ao Campo de Concentração do Tarrafal.
Libertado nove anos depois, funda as Edições Claridade. Mas a PIDE faria abortar o projecto. Vai viver para Moçambique, onde se mantém activo nos meios antifascistas. Regressa após o 25 de Abril, tendo dirigido o jornal da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses. Morreu em 1992.
Nove anos no Tarrafal
Miguel Wager Russell integrou o segundo grupo de prisioneiros a chegar ao Campo de Concentração do Tarrafal. Embarcou no Lourenço Marques no início de Junho de 1937, tendo chegado ao campo em meados do mesmo mês.
O seu livro de memórias Recordações dos Anos Difíceis (publicado pelas Edições Avante!, em 1976), constitui um vivo testemunho da violência fascista e da resistência. Conta Russell que ainda nas prisões do continente, aquando dos interrogatórios, se recusou a responder a quaisquer perguntas sobre nomes e moradas de camaradas. Foi então que «todo aquele bando me caiu em cima, agredindo-me sem parança. Somente quando o sangue escorria, abundante, pela cara, me levavam à casa de banho, para que me lavasse. De regresso à sala, recomeçavam as agressões de mistura com as mesmas perguntas»(5).
No final do interminável interrogatório, «já não conseguia levantar-me do chão, mas nem por isso cessavam os pontapés, as cacetadas e os bofetões enquanto me punham de pé».(6)
Já no famigerado «Campo da Morte Lenta», as violências físicas e psíquicas aumentavam. Água de má qualidade, doença, trabalhos forçados, agressões e torturas várias constituíam o dia-a-dia dos presos do Tarrafal.
Na «frigideira», conta, «dormíamos no chão, onde houvera o “cuidado” de espalhar areia da praia que se nos cravava na pele. Bastavam três presos castigados na mesma cela para caírem do tecto, como chuva, as gotas de água condensadas da respiração. Íamos para o castigo descalços e sem cintos, e o nosso primeiro acto, ao fechar-se a porta sobre nós, era o de nos pormos nus. O calor era atroz»(7).
No Tarrafal, o fascismo ceifou a vida a 32 antifascistas. Entre eles, o secretário-geral do Partido, Bento Gonçalves. Miguel Russell conta que «fazíamos veladas de uma hora por turnos sucessivos de todos os presos e de todos os cárceres, durante o dia e pela noite adiante». «Em dezenas de ocasiões ali estivéramos como agora, prestando as últimas homenagens aos nossos mortos», prosseguiu(8).
Outros presos não morreram no campo, tendo sido «libertados» para morrer pouco depois. Foi o caso de Alberto Araújo, recorda no seu livro. Este militante comunista, «doente e fraco, já estivera internado anos antes, durante longo período, no Sanatório do Caramulo. O director e o médico, que não ignoravam o caso, pretendiam vergar aquele nosso camarada, justamente considerado elemento de grande prestígio entre nós»(9). Recorda Russell que «os maus tratos (viveu dez meses incomunicável, na metrópole, após a prisão), o desterro, os trabalhos forçados e a ausência de cuidados médicos apropriados abreviaram-lhe a vida»(10).
O dia da libertação, devido a uma amnistia «forçada» pela derrota do nazifascismo na Guerra, é recordado com emoção no final da obra. «À medida que o navio se aproximava do cais de Alcântara, onde atracaria, íamos distinguindo uma massa enorme de gente que nos acenava. Milhares de pessoas haviam acorrido ao cais mobilizadas pelas organizações antifascistas para nos saudarem (…) Os gritos, os abraços, as lágrimas dos familiares e conhecidos que nos recebiam de braços abertos geravam uma maravilhosa balbúrdia.» (11)
___________
(1) Bento Gonçalves, «Palavras Necessárias», in Os comunistas, p 111.
(2) Idem, ibidem.
(3) Idem, in «Relatório apresentado ao Congresso da Internacional Comunista (1935), in Os comunistas, p.114.
(4) Idem, in «Relatório apresentado ao Congresso da Internacional Comunista (1935), in Os comunistas, p.115.
(5)Miguel Wager Russell, Recordações dos Anos Difíceis, Lisboa, Edições Avante!, 1976. p. 22.
(6) Idem, ibidem.
(7) Idem, ibidem, p. 63.
(8) Idem, ibidem, p. 115.
(9) Idem, ibidem, p. 79.
(10) Idem, ibidem, p. 80.
(11)Idem, ibidem, p. 132.