Todos bons rapazes

José Casanova (Membro da Comissão Política)
De entre as armas utilizadas no assassinato político, os media constituem uma das mais poderosas e aquela a que, com cada vez mais frequência, recorrem os cada vez mais numerosos praticantes dessa modalidade. Felizmente que nem sempre com êxito.

«A reposição da verdade fica sempre muito aquém da divulgação da mentira»

Escreve o jornalista Jack Naffair em artigo reproduzido no site http//resistir.info que, em 22 de Abril de 2003, o diário britânico Daily Telegraph, dedicava a sua primeira página e mais quatro páginas interiores a um «exclusivo» bombástico. Informava, então, aquele jornal de referência que o deputado trabalhista George Galloway, descrito como «o militante pacifista mais activo e notório na Grã Bretanha», estava ser pago (milhões, muitos milhões...) por Saddam Hussein. O «exclusivo» revelava-se oportuníssimo: assassinando Galloway provocava o descrédito do poderoso movimento contra a guerra então em curso no Reino Unido. Não querendo ficar atrás, o diário norte-americano Christian Science Monitor, confirmava, três dias depois, a bombástica notícia, e disparava documentos da mesma família dos utilizados pelo diário britânico. As provas, num caso e noutro, eram irrefutáveis: o correspondente do Daily Telegraph no Iraque encontrara-as, oportunamente, nas ruínas do ministério dos negócios estrangeiros; o correspondente do Christian Science Monitor obtivera-as directamente das mãos de um «general ligado à Guarda presidencial» que, por sua vez, as teria «ele próprio, encontrado numa casa dos arredores de Bagdade»...
A notícia correu mundo. Quer através de todos os jornais do grupo Hollinger, que é proprietário do Daily Telegraph e de mais 378 títulos («incluindo dois terços da imprensa canadiana, numerosos títulos nos Estados Unidos e no Reino Unido e seis publicações em Israel»), quer através dos jornais dos outros grupos, gémeos do Hollinger nos seus objectivos.. A generalidade dos media portugueses – os de referência e os outros... - agiu dentro da previsibilidade: disparou a mentira. Por seu turno, o Le Monde, outro jornal de referência, apresentou Galloway como «enfeudado à extrema esquerda, cegamente anti-americano, anti-israelense e pró-palestiniano» - como se vê, tudo crimes de lesa-democracia...
Os desmentidos do deputado britânico face às acusações de que era alvo tiveram, naturalmente, pouca divulgação e praticamente nenhuns efeitos: na verdade, quem se atreve a pôr em dúvida a verdade absoluta da comunicação social dominante?; quem vai acreditar num «anti-americanista», ou seja, num «pacifista»? Há lá coisa pior do que ser pacifista!? (razão tem o minúsculo Aznar – com o seu «bigotito hitleriano»– que vai pôr cobro a estes desmandos com uma lei – democrática, já se vê - que prevê pesadas penas de prisão para quem participe em manifestações pacifistas... )
Galloway foi, assim, cilindrado – democraticamente cilindrado, como é timbre da comunicação social dominante. Blair e os seus pares, aproveitaram o ataque do grupo Hollinger a Galloway para castigar o deputado trabalhista pelas suas posições pacifistas e por ter qualificado Blair e Bush como «lobos»: afastaram-no «da possibilidade de exercer responsabilidades ou de representar o partido, enquanto aguarda o resultado de um inquérito interno».
Um mês depois, a mentira foi desmascarada: afinal, o Daily Telegraph e o Christian Science Monitor tinham comprado os documentos – que o semanário Mail on Sunday demonstrou serem falsificados – a «1500 dólares» a meia dúzia... Ou seja: quando acusaram Galloway sabiam que estavam a divulgar uma calúnia... O Christian Science Monitor foi obrigado a reconhecer, que «os documentos sobre Galloway são aparentemente falsos» (aparentemente, neste caso, significa indubitavelmente...). Mas, como é hábito nestas situações, a reposição da verdade fica sempre muito aquém da divulgação da mentira... Para a mentira e a calúnia, manchetes sensacionais; para a verdade, meia dúzia de linhas cuidadosamente escondidas. E viva a liberdade de informação...
Resta dizer que o grupo Hollinger é «detido maioritariamente por Lord Conrad M. Black, amigo pessoal de Ariel Sharon (...) e por Leslie H. Wexner, presidente da Fundação Wexner, que aconselha o governo israelense em matéria de comunicação». Da direcção do grupo fazem parte, também, Henry Kissinger e Richard Perle, conselheiro de Benjamin Netanyahu e de Donald Rumsfeld – todos, como se sabe, fervorosos defensores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos; todos defensores assanhados da liberdade de informação, enfim todos democratas, todos bons rapazes.


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