
- Nº 1549 (2003/08/7)
Todos bons rapazes
Opinião
De entre as armas utilizadas no assassinato político, os media constituem uma das mais poderosas e aquela a que, com cada vez mais frequência, recorrem os cada vez mais numerosos praticantes dessa modalidade. Felizmente que nem sempre com êxito.
Escreve o jornalista Jack Naffair em artigo reproduzido no site http//resistir.info que, em 22 de Abril de 2003, o diário britânico Daily Telegraph, dedicava a sua primeira página e mais quatro páginas interiores a um «exclusivo» bombástico. Informava, então, aquele jornal de referência que o deputado trabalhista George Galloway, descrito como «o militante pacifista mais activo e notório na Grã Bretanha», estava ser pago (milhões, muitos milhões...) por Saddam Hussein. O «exclusivo» revelava-se oportuníssimo: assassinando Galloway provocava o descrédito do poderoso movimento contra a guerra então em curso no Reino Unido. Não querendo ficar atrás, o diário norte-americano Christian Science Monitor, confirmava, três dias depois, a bombástica notícia, e disparava documentos da mesma família dos utilizados pelo diário britânico. As provas, num caso e noutro, eram irrefutáveis: o correspondente do Daily Telegraph no Iraque encontrara-as, oportunamente, nas ruínas do ministério dos negócios estrangeiros; o correspondente do Christian Science Monitor obtivera-as directamente das mãos de um «general ligado à Guarda presidencial» que, por sua vez, as teria «ele próprio, encontrado numa casa dos arredores de Bagdade»...
A notícia correu mundo. Quer através de todos os jornais do grupo Hollinger, que é proprietário do Daily Telegraph e de mais 378 títulos («incluindo dois terços da imprensa canadiana, numerosos títulos nos Estados Unidos e no Reino Unido e seis publicações em Israel»), quer através dos jornais dos outros grupos, gémeos do Hollinger nos seus objectivos.. A generalidade dos media portugueses – os de referência e os outros... - agiu dentro da previsibilidade: disparou a mentira. Por seu turno, o Le Monde, outro jornal de referência, apresentou Galloway como «enfeudado à extrema esquerda, cegamente anti-americano, anti-israelense e pró-palestiniano» - como se vê, tudo crimes de lesa-democracia...
Os desmentidos do deputado britânico face às acusações de que era alvo tiveram, naturalmente, pouca divulgação e praticamente nenhuns efeitos: na verdade, quem se atreve a pôr em dúvida a verdade absoluta da comunicação social dominante?; quem vai acreditar num «anti-americanista», ou seja, num «pacifista»? Há lá coisa pior do que ser pacifista!? (razão tem o minúsculo Aznar – com o seu «bigotito hitleriano»– que vai pôr cobro a estes desmandos com uma lei – democrática, já se vê - que prevê pesadas penas de prisão para quem participe em manifestações pacifistas... )
Galloway foi, assim, cilindrado – democraticamente cilindrado, como é timbre da comunicação social dominante. Blair e os seus pares, aproveitaram o ataque do grupo Hollinger a Galloway para castigar o deputado trabalhista pelas suas posições pacifistas e por ter qualificado Blair e Bush como «lobos»: afastaram-no «da possibilidade de exercer responsabilidades ou de representar o partido, enquanto aguarda o resultado de um inquérito interno».
Um mês depois, a mentira foi desmascarada: afinal, o Daily Telegraph e o Christian Science Monitor tinham comprado os documentos – que o semanário Mail on Sunday demonstrou serem falsificados – a «1500 dólares» a meia dúzia... Ou seja: quando acusaram Galloway sabiam que estavam a divulgar uma calúnia... O Christian Science Monitor foi obrigado a reconhecer, que «os documentos sobre Galloway são aparentemente falsos» (aparentemente, neste caso, significa indubitavelmente...). Mas, como é hábito nestas situações, a reposição da verdade fica sempre muito aquém da divulgação da mentira... Para a mentira e a calúnia, manchetes sensacionais; para a verdade, meia dúzia de linhas cuidadosamente escondidas. E viva a liberdade de informação...
Resta dizer que o grupo Hollinger é «detido maioritariamente por Lord Conrad M. Black, amigo pessoal de Ariel Sharon (...) e por Leslie H. Wexner, presidente da Fundação Wexner, que aconselha o governo israelense em matéria de comunicação». Da direcção do grupo fazem parte, também, Henry Kissinger e Richard Perle, conselheiro de Benjamin Netanyahu e de Donald Rumsfeld – todos, como se sabe, fervorosos defensores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos; todos defensores assanhados da liberdade de informação, enfim todos democratas, todos bons rapazes.
José Casanova