Comendas e transições

Hugo Janeiro
Encerrado com resultado proveitoso para a direita o período de campanha e eleição do Presidente da República, surgem amiúde na comunicação social dominante palavras como comendas e transição.
A insistência do seu uso em notícias, opiniões e comentários, obriga a uma reflexão sobre o conteúdo que transportam e o papel que desempenham na aceitação de uma realidade que, repetem na esperança que nos conformemos, é a que temos, melhor não há, e quanto mais depressa nos dispusermos aos sacrifícios em seu nome, maior será a grandeza pátria.
Em contagem decrescente para a tomada de posse do novo Chefe de Estado, o ainda Presidente gasta os últimos cartuchos distribuindo comendas.
Salvo raras excepções, no rol dos galardoados encontram-se representantes, administradores e proprietários de algumas das mais poderosas empresas nacionais e estrangeiras, entre os quais o homem mais rico do mundo, William Henry III – conhecido mesmo pelos menos chegados como Bill Gates - tido como exemplo acabado de sucesso e filantropia.
Pela porta entreaberta, Jorge Sampaio fecha dez anos em Belém condecorando com a Ordem do Mérito e a Ordem do Infante, personalidades que no juízo do Presidente prestaram «actos ou serviços meritórios praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, ou que revelem desinteresse e abnegação em favor da colectividade».
Será que percebemos bem? Quando milhões de portugueses já nem cinto têm para apertar outro furo, e sobrevivem à intempérie das políticas de direita cobrindo os nus com tanga curta, Jorge Sampaio distingue por mérito, abnegação e desinteresse os senhores que exibem sobretudos recheados de notas?
Já não é novidade para ninguém que muitos candidatos presidenciais se apresentam ao povo rejeitando o popularizado papel de corta-fitas. Sampaio também garantiu não ser esse o seu entendimento da função de mais alto magistrado da nação. Nós recordamo-nos. Mas vale a pena perguntar: Mesmo a contragosto, quando foi obrigado a empunhar a tesoura, cortou a fita mais à esquerda ou mais à direita?
Para além de agraciar os senhores do sobretudo, o Presidente também ocupou a sua agenda encontrando-se com o senhor que se segue. Nem Sampaio nem Cavaco divulgaram o teor da reunião, só um leve ruído passou a pairar sobre o vocabulário corrente, o da «transição tranquila».
A expressão usada por Cavaco após a vitória eleitoral encerra mais um tabu que o próprio se abstém de explicar. Felizmente, há sempre quem vá adiantando qualquer coisa por ele, como um dos membros da sua comissão de honra.
A respeito da competência do próximo presidente e da sua «vontade evidente de contribuir para uma melhor acção governativa», António Borges explica, em artigo intitulado «Novo ciclo político português», publicado na Visão de 26 de Janeiro, que «o problema, claro está, é que o Presidente não governa. Ao contrário do que se passa em França, por exemplo, Cavaco Silva não vai presidir ao Conselho de Ministros».
Com grande intranquilidade, ficamos a saber que a tal «transição» poderá não ser só de cadeiras e pastas, mas de regime e do seu conteúdo.
Assim é quando o ainda Presidente oferece as derradeiras comendas à ideologia do tempo passado, e o próximo Presidente quer concluir a transição de poder para uma classe que, continuamos confiantes e determinados, mais cedo do que tarde deixará de ser futuro.


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