Caracas e Bamako – espaços de um combate comum

Jorge Cordeiro (Membro da Comissão Política do CC do PCP)
Teve início em Caracas e em Bamako a edição de 2006 do Fórum Social Mundial. Descentralizado por três continentes — para além de Caracas na Venezuela e Bamako no Mali em África, também Carachi no Paquistão embora adiado devido ao sismo aí ocorrido — é o Fórum do continente sul-americano que suscita as maiores atenções e visibilidade.

Ca­racas e Ba­mako serão um mo­mento mais na luta contra a glo­ba­li­zação ca­pi­ta­lista

É natural que assim seja: ali se une a dinâmica de contestação à globalização capitalista que têm marcado os vários Fóruns a um processo nacional marcadamente progressista e anti-imperialista; ali se reúne a expressão de um «movimento» que para lá das fronteiras age no sentido de reunir forças e vontades para contestar o caminho do neoliberalismo com o exemplo concreto de um processo que testemunha e comprova, sem prejuízo nem desvalorização da contestação mais geral, o papel decisivo que o espaço nacional e a afirmação soberana de cada Estado desempenha não apenas na resistência ao imperialismo como na afirmação e construção de caminhos que rompam com as receitas neoliberais e contestem a nova ordem internacional que os Estados Unidos procuram impor; ali se cruza, na diversidade das suas causas, um largo conjunto de forças que aspiram a um outro mundo e que o desejam possível com os que mais consequentemente apontam a natureza socialista dessa outra opção como condição para um mundo liberto da exploração, desigualdade, guerra e terror que o capitalismo tem para impor; ali conflui uma larga convergência de opiniões quanto às consequências da globalização e à sua natureza desumana com uma mais reduzida percepção das natureza e causas que lhe estão na origem e sobretudo uma ainda insuficiente identificação da única alternativa capaz de lhes dar reposta – o socialismo. Ali, como em todos os espaços do «movimento antiglobalização», se confrontará naturalmente a expressão da intensa luta ideológica que o percorre entre os que, preocupados com a dinâmica anticapitalista e anti-imperialista mais marcada que possa vir a assumir, o procuram domar e tornar inconsequente (de que a subtil troca da expressão antiglobalização por alterglobalização que alguns procuram difundir neste espaço é apenas a tradução da teoria da «humanização» do processo de globalização destinada a dissociá-la da sua natureza imperialista e capitalista) e os que trabalham para o afirmar pelos seus objectivos e conteúdo como factor de elevação da consciência política e social e de identificação no capitalismo, e nas relações de produção que o suportam, como causa e razão dos problemas que a humanidade enfrenta.

Pre­sença in­subs­ti­tuível

Ali uma vez mais os comunistas, incluindo os comunistas portugueses, marcarão presença. Uma presença insubstituível, conquistada por direito próprio, confirmadamente necessária à luta pela construção de uma alternativa. Uma presença indispensável enquanto contributiva para unir os que se opõem ao neoliberalismo e à guerra e para reduzir a base social de apoio ao capitalismo. Uma presença indelegável na forte, ainda que muitas vezes não explícita, luta ideológica que ali se trava. Uma luta contra os que procuram pela sua intervenção condicionar e limitar ideologicamente o «movimento» e torná-lo inofensivo para os interesses dominantes, recorrendo para isso à subalternização ou tentativa de ostracização do papel das organizações de classe, das ideias comunistas e da desvalorização da luta dos trabalhadores. Uma luta contra os que, alarmados com a dinâmica do «movimento» e da participação das massas, se apressam a apontar os caminhos da reforma e da democratização do capital e das instâncias internacionais como a saída para os problemas deste mundo. Uma luta contra os que, radicalizando o discurso, animam o movimento pelo movimento; negam o papel decisivo da luta e da imperatividade da sua organização revolucionária; transferem para o global a luta que sabem não ter raízes para conduzir no espaço concreto de cada país; difundem um sem fim de lugares-comuns e frases feitas (do «povo constituinte» à opinião pública como «quarto poder») sem conteúdo e objectivo. Uma luta contra os que, negando ou desvalorizando a exploração como expressão central da opressão capitalista, procuram artificialmente contrapor os movimentos que lutam por causas específicas (como as ambientais, as da igualdade ou as de orientação sexual) às organizações de classe que travam a luta contra o capitalismo, iludindo que é precisamente no modo e nas relações de produção e propriedade e na apropriação desigual da riqueza que as discriminações que aquelas organizações legitimamente combatem se fundam e desenvolvem.
Caracas e Bamako serão um momento mais, como Porto Alegre e Bombaim já o foram, na complexa e prolongada luta que os trabalhadores e os povos estão convocados a travar contra a globalização capitalista. Uma luta que ganhando força na expressão internacional que assume não prescinde da luta concreta em cada espaço onde o confronto com o capitalismo e os seus mecanismos de exploração são mais próximos. Uma luta que colocando no centro dos seus objectivos a questão do poder e da sua disputa, combata as ilusões da luta circunscrita à democratização do poder e aos mecanismos de regulação à margem das questões do Estado, dos interesses que organiza e das relações de propriedade que promove e assegura.


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