Uma guerra contra o mundo

Rui Namorado Rosa
No confronto pela hegemonia económica e política mundial, o declínio do império britânico é perceptível desde o último quartel do século XIX. Tornou-se então patente a intensa competição entre as potências emergentes, com destaque para os EUA e a Alemanha, que haviam concluído os respectivos processos de consolidação interna e iniciado já a expansão externa. A Conferência de Berlim (1884-85), que realizou a «partilha do mundo» entre as potências europeias, é sintomática do declínio do império britânico, e assinala um novo passo na escalada da globalização capitalista.

O sistema capitalista carecia de acrescido «espaço vital» para manter o seu crescimento e essa foi a solução então encontrada, à custa da autonomia, recursos e cultura dos povos colonizados.

Com o desencadear da Primeira Guerra Mundial a corrida ao petróleo acelerou e todas as potências procuraram obter posições no negócio. Com o fim da Guerra e o colapso do império Otomano, a Grã-Bretanha obteve mandato da Sociedade das Nações para administrar a Pérsia, a Península Arábica e a Palestina. Pôde então talhar a província da Mesopotâmia (actual Iraque) como um reino sob sua protecção. A exploração desses recursos foi obra do arménio turco Calouste Gulbenkian, que para o efeito constituiu a Companhia Turca do Petróleo, ainda em 1912, com capitais alemães e turcos, a qual não chegaria a operar mercê do início e das vicissitudes da guerra. Após intricadas negociações, a Companhia foi reestruturada para dar lugar à Companhia de Petróleo do Iraque (1928), agora com capitais britânicos, holandeses, franceses e norte-americanos. Gulbenkian foi premiado com a titularidade de 5% do capital, sendo desde então conhecido por «senhor cinco por cento».

Após a Segunda Guerra Mundial o nacionalismo árabe, a par dos movimentos de libertação nacional e anti-colonialistas, conduziu à progressiva nacionalização de recursos na região. No Iraque, a monarquia foi derrubada e um regime republicano instaurado em 1958; em 1963 o partido Baath tomou o poder; a Companhia de Petróleo do Iraque foi nacionalizada em 1972. Saddam Hussein assumiu a presidência do partido Baath e do país em 1979. Não obstante a luta do nacionalismo árabe, o reordenamento do Médio Oriente foi aprofundado mediante a persistente acção diplomática e militar das antigas potências coloniais e dos EUA. O Iraque e os países vizinhos constituem hoje um puzzle cultural e político, recente e instável, talhado artificialmente e para satisfação dos interesses das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial.

Foi neste contexto que o Iraque e o Irão se envolveram numa guerra insensata e fratricida, entre 1980 e 1988, o Iraque sendo então encorajado e armado pelas potências capitalistas. Foi nesse contexto, ainda, que em 1990 o Iraque, por razões próprias e sob estímulo externo, ocupou o Koweit, sendo depois alvo da Guerra do Golfo em que sofreu pesados prejuízos humanos e materiais. Foram aí testadas armas não antes utilizadas, como as munições de urânio empobrecido, de facto armas químicas e radiológicas de efeitos indiscriminados, responsáveis pela síndrome do Golfo entre milhares de soldados veteranos e de centenas de milhar de vítimas entre as crianças iraquianas.


A hegemonia americana


Disputadas duas Guerras Mundiais em que a Alemanha foi derrotada, os EUA acabaram por emergir como o novo pólo hegemónico do sistema capitalista mundial. Iniciava-se um novo ciclo económico longo e um novo ciclo do sistema político mundial, agora sob a hegemonia dos EUA. No plano económico, a consolidação deste ciclo foi coadjuvada pela progressiva dolarização das reservas dos bancos centrais e do comércio mundial, com o apoio do FMI/BM. A partir da década de 1970, porém, o declínio económico dos EUA resultou da perda de sustentabilidade global, traduzido pela acumulação de enorme défice comercial pelos EUA e de enorme dívida externa pelos países da periferia. Esta crise tem sido dissimulada e travada pela intensificação dos fluxos internacionais de mercadorias, serviços e capitais, de que a Organização Mundial de Comércio (OMC) tem sido agente. Um e outro factor criaram condições para a progressiva acumulação de capital financeiro especulativo.

Não obstante o manancial de inovações científico-técnicas produzidas nas últimas décadas, a «nova-economia» não se traduziu no lançamento do esperado e adiado 5.º ciclo económico longo (Kondratieff). Haverá duas razões substanciais para esta grave crise; uma, é a doutrina económica neo-liberal que tendo «justificado» a ideologia e a praxis capitalista nas últimas décadas, é agora obstáculo ao relançamento da produção (por oposição, na correspondente fase do anterior ciclo económico, a doutrina keynesiana inspirou o estado providência); outra, é a colisão do crescimento económico com os limites materiais impostos pelos recursos e ambiente naturais.

No plano político-militar era perceptível, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o propósito de os EUA assumirem a hegemonia unipolar do sistema capitalista mundial, embora constrangido pelo bloco socialista mas, uma vez este derrotado na Guerra-Fria, logo os EUA pretenderam exercer o seu poder hegemónico sem limites. Assim se seguiram a Guerra do Golfo e a Guerra nos Balcãs. Em consonância, a ONU foi sendo marginalizada, por se ter entretanto tornando um obstáculo, e a NATO redefinida, para procurar manter a custódia dos EUA sobre os seus membros e «legitimar» o alargamento da sua área de intervenção. Todavia, coexistem outras potências capitalistas cujos interesses estão em confronto; no Conselho Europeu de Lisboa de Março de 2000 a União Europeia afirmara a sua intenção de assumir posição hegemónica mundial no horizonte de uma década; aliados incondicionais ou oportunistas de então são agora reservados ou até potenciais contendores; a UE encontra-se agora dividida face à ONU, à NATO e a uma eventual Segunda Guerra no Golfo. Mas não nos iludamos, mais do que a aspiração hegemónica importa aos poderes económicos capitalistas a sobrevivência do próprio sistema.


O petróleo não é eterno


A presente agressividade para o controlo militar do Golfo Arábico-Persa testemunha que o sistema capitalista entrou numa nova crise, todavia sem paralelo nos anteriores ciclos económicos longos. As manifestações económicas e financeiras da crise não são novidade e pareceriam a repetição de experiências passadas. Porém a presente situação reflecte também a grave preocupação face ao eminente declínio da capacidade de produção de petróleo a nível mundial, e o facto de as maiores reservas remanescentes se encontrarem na região do Golfo.

Este declínio não tem a ver com preços ou com forças de mercado mas sim com a incontornável limitação física das reservas de petróleo convencional. Pela primeira vez desde o surgimento do sistema capitalista, um factor de produção essencial - Energia - torna-se escasso, não só em termos económicos mas também em termos físicos. Os quadros de pensamento dominantes não prevêem nem podem resolver essa situação «absurda». Tal será a razão pela qual essa evidência tem sido descartada por tão incómoda que é, pois que coloca em causa não só as teorias económicas dominantes como sobretudo a sustentabilidade do presente modelo económico. Depois do consabido «crescimento económico» e do sinuoso «desenvolvimento sustentável», nada mais há para iludir a dura realidade material. É o próprio sistema capitalista global que não dispõe de mais «espaço» vital para a sua sustentação. O planeta Terra já não o comporta.


Merecemos melhor


O partido da guerra tomou o poder em Washington. Multiplicam-se campanhas manipuladoras da opinião pública «ocidental» a favor da guerra contra o Iraque: aterrorizando as populações com anunciadas ameaças de actos terroristas que não acontecem (ou que podem ser suspeitosamente desencadeados), satanizando um líder político autoritário, invocando ameaças militares apocalípticas (inverosímeis), prometendo a «democratização» dum regime estrangeiro por via da força (protectorado), etc.. Trata-se de atacar o Iraque por enquanto; mas a instabilidade regional e a lógica desta intervenção no Golfo levarão essa intervenção inicial a alargar-se a toda a região, a fim de a controlar politicamente, com as respectivas reservas de petróleo e de gás natural.

Postas as desigualdades de dependência energética, a guerra dos EUA pelo controlo dos recursos do Golfo é, de facto, uma guerra conduzida pelos EUA contra a União Europeia e demais pólos do sistema capitalista mundial que, à excepção da Rússia, são todos muito mais dependentes da importação de energia. Saddam Hussein aparece aqui como inimigo por proxy. É também uma guerra contra os países menos industrializados, com capitações energéticas ainda muito baixas, incluindo a China e a Índia. É na realidade uma guerra do sistema capitalista mundial, através do seu braço armado, contra todo o Mundo.

Em Portugal, um governo seguidista, figuras públicas, órgãos de comunicação e «fazedores de opinião» concertam-se a promover o partido da guerra. Que prejuízos arrecadaremos nós no âmbito do convívio multicultural, interno e externo (Magreb, Guiné Bissau, Moçambique, Timor, etc.). E que prejuízos pagaremos pelo colossal impacto económico de uma profunda crise energética sabendo que o nosso país importa 90% da energia que consome. Merecemos melhor futuro.



Mais artigos de: Em Foco

A guerra anunciada

O ataque dos EUA ao Iraque está iminente. Quando as bombas começarem a cair sobre Bagdad e tiver início a chacina não será apenas o povo iraquiano a tombar vítima do império norte-americano. Nesse preciso momento consumar-se-á a morte do direito e da ordem internacionais como os conhecemos até agora, e sob o clamor da bombas, numa orgia de sangue e destruição, Washington dará à luz o monstro que há muito vem alimentando nas suas entranhas.
Os argumentos invocados pelos senhores da guerra instalados na Casa Branca para atacar o Iraque não passam de pretextos facilmente desmontáveis, como se comprova no dossier que o Avante!  hoje publica. O repúdio dos povos de todo o mundo não fez ainda abortar este atentado contra a humanidade, mas por mais dolorosa que seja a era que agora se inicia, ela é simultaneamente o princípio do seu próprio fim. Quando mais nada resta senão a força o poder é efémero.

Neste dossier:

• Anabela Fino - Um império orgulhosamente só
• André Levy - Fazer a guerra antes que o barro seque
• Jorge Cadima - Mentiras e crimes de guerra
• Luís Carapinha - A Rússia insustentável
• Miguel Urbano Rodrigues - A humanidade contra o IV Reich
• Rui Paz - Os alemães descobrem os "frankensteins" americanos
• Rui Namorado Rosa - Uma guerra contra o mundo

Um império orgulhosamente só

A escassos dias de terminar o ultimato imposto ao Iraque - dia 17 - já não restam dúvidas de que os EUA, acolitados pela Grã-Bretanha, vão atacar o Iraque com ou sem o aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É o desfecho previsível da encenação há muito montada para lançar mão ao petróleo e a uma região do mundo considerada de «interesse vital» para os norte-americanos.

Fazer a guerra antes que o barro seque

Enquanto o mundo reagia com horror às imagens dos ataques terroristas do onze de Setembro de 2001, elementos da Administração Bush viam o evento como uma fantástica oportunidade. Assim o descreveu explicitamente a Conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice: «Um tremor de terra da magnitude do 11 de Setembro pode mudar as placas tectónicas da política internacional. [O pós 11 de Setembro marca um período] não só de grande perigo, mas também de enorme oportunidade. Antes que o barro solidifique de novo, os EUA e os nossos aliados devem mover-se decisivamente para tirar proveito das novas oportunidades.»

Mentiras e crimes de guerra

«O Mundo assinalará que a primeira bomba atómica foi lançada sobre Hiroxima, uma base militar. Tal facto resulta da nossa intenção de, neste primeiro ataque, evitar tanto quanto possível a morte de civis». Estas palavras do então presidente dos EUA, Harry Truman, foram proferidas no dia 9 de Agosto de 1945, num discurso transmitido pela rádio(1). Aquilo que realmente permitiram ao mundo assinalar é que a natureza criminosa e genocida da classe dirigente norte-americana é apenas igualada pelo seu cinismo e pela sua incomparável capacidade para a mentira mais despudorada.

A Rússia insustentável

Neste início de século, a guerra chega de novo a zonas não muito distantes das fronteiras da Federação Russa pela mão dos Estados Unidos. A intervenção militar americana no Afeganistão, a pretexto da denominada campanha internacional contra o terrorismo decorrente dos atentados de 11 de Setembro, que mereceu o apoio da direcção russa, foi o prelúdio para um ano negro para os interesses e segurança da Rússia: 2002 ficou assinalado, nas palavras do general Ivachov, antigo alto funcionário do Ministério da Refesa russo, demitido pelo actual ministro da tutela após pressões de Washington, por o «recuo geopolítico de Moscovo em todas as direcções estratégicas» (Sovietskaya Rossia, 06.03.03).

A humanidade contra o IV Reich *

O 15 de Fevereiro de 2003 ficará como data de viragem na grande aventura da humanidade.

Em centenas de cidades da Europa, da Ásia, da América, da África e da Oceânia milhões de pessoas saíram nesse dia às ruas para se manifestarem contra a guerra, respondendo ao apelo do Fórum Social Mundial. Nunca antes acontecera algo similar. Foi a primeira manifestação de protesto global da História.

Os alemães descobrem os frankensteins americanos

O meio milhão de pessoas que a 15 de Fevereiro se manifestou em Berlim e as centenas de milhares que nos últimos meses têm vindo a fazer ouvir o seu protesto nas ruas, confirmam que a esmagadora maioria do povo alemão recusa apoiar mais um ciclo de guerras imperialistas. A mobilização pela a paz atinge níveis inéditos na história da Alemanha, apesar de uma correlação de forças internacional muito mais desfavorável às forças progressistas do que a que se verificava nos anos oitenta, no momento das grandiosas manifestações contra o estacionamento dos Persching II.