Fazer a guerra antes que o barro seque
O contexto político doméstico sofreu de facto uma reviravolta. Uma administração de legitimidade questionável, um presidente regularmente ridicularizado, enfrentando um Senado democrata e uma maioria marginal na Câmara de Representantes, que timidamente introduzia decretos de lei, transformou-se no rescaldo da tragédia no gabinete com maior apoio popular desde o pós-guerra.
A campanha de resposta ao terrorismo e o clima de medo (mantido vivo com os ataques postais com antraz e constantes alertas emitidos pelo Procurador Geral) gerou uma postura de unanimismo em torno de Bush que lhe deu confiança suficiente para lançar políticas domésticas e geoestratégicas do mais reaccionário e imperial que há. Este clima de apoio acompanhou o presidente até às passadas eleições (em Novembro de 2002), onde o Partido Republicano, confrontando um Partido Democrata sem voz própria e sem confiança para criticar o presidente na sua campanha militar ou política fiscal, viu a sua popularidade confirmada na conquista de uma maioria no Senado e na Câmara de Representantes.
Gozando uma onda de apoio, a Administração pensou estarem reunidas condições para implementar uma política de Domínio de Espectro Total. Expressa inicialmente no seguimento da perda de influência da URSS no Guia de Planeamento da Defesa(1), e surgindo na sua versão moderna na Estratégia de Segurança Nacional (ESN)(2), o objectivo é claramente alcançar uma posição de domínio económico, militar e geoestratégico mantida através de um poderio militar insuperável e prevenir activamente a ascensão de novos rivais.
O alvo previsível
O presente confronto interno e internacional em relação ao Iraque é um teste à capacidade de implementação desta estratégia, da esfera de influência dos EUA e do seu exceptionalismo. Dada a composição da Administração, a escolha do Iraque era previsível. O actual Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld e seu subsecretário Paul Wolfowitz exigem desde 1992 acção militar contra Saddam Hussein, invocando mais tarde o Acto de Liberação do Iraque, legislação aprovada pelo Congresso em 1998 durante a presidência de Bill Clinton, que clama «a remoção de Hussein do poder e promover a emergência de uma governo democrático»(3). O desejo de atacar o Iraque precedeu ataques terroristas e quaisquer preocupações com armas de destruição maciça (ADMs), mas veio de imediato à superfície logo após o 11 de Setembro(4).
A Administração Bush tentou transferir o apoio à guerra contra o terrorismo para uma guerra contra o Iraque. Enquanto a guerra no Afeganistão e a busca de Osama bin Laden consumiam as atenções do público, distraindo-o das suas frustrações com escândalos económicos (e.g., Enron, Worldcom) e uma economia à beira de uma recessão, o Departamento de Defesa preparava planos de ataque e punha tropas e equipamento em movimento (e.g., a deslocação de tropas da Arábia Saudita para uma base no Qatar). Mas esperou até Setembro para tornar público as suas intenções, pois segundo o chefe de pessoal, Andrew Card, «do ponto de vista de marketing não se lança um novo produto em Agosto». Bush apresentou à Assembleia Geral das Nações Unidas o seu caso contra o Iraque a 11 de Setembro de 2002, data com conotações óbvias.
Escalada armamentista
Passado mais de um ano e meio ainda não existem evidências de qualquer elo claro entre o regime de Saddam e os terroristas do 11 de Setembro ou a rede Al Qaeda, apesar dos enormes esforços tanto da CIA como do FBI. Mesmo a Inteligência Militar dos EUA, que tem recebido tremendas pressões para produzir evidência de laços confessa em comunicados internos não existir qualquer conexão(5). Na sua mais recente apresentação ao Conselho de Segurança (5/2/03), Colin Powell sugeriu de novo uma ligação entre Saddam e a Al Qaeda, argumentando que uma base no norte do Iraque - região controlada no terreno por curdos e sobrevoada por aviões dos EUA e da Grã-Bretanha - era responsável por actividade terrorista por toda a Europa e implicava Saddam. Mas no dia seguinte, um documento da inteligência militar britânica fornecido à imprensa revelava não existirem indícios de cumplicidade(6).
Este padrão tem ocorrido repetidamente. A Administração persiste em apresentar publicamente argumentos para avançar com a sua causa que são distorções ou claramente mentiras. E têm logrado confundir os temas de terrorismo e Iraque. A meio de Janeiro de 2003, metade dos EUA ainda acreditava erroneamente que um ou mais dos terroristas nos aviões no 11 de Setembro eram iraquianos(7).
Bush tem insistido nos temas de desarmamento e no carácter repressivo do regime de Saddam para justificar uma guerra com o objectivo de mudar o regime iraquiano(8). A cumplicidade dos EUA (e Europa) no desenvolvimento dos programas de produção de ADMs por Saddam(9), durante a guerra com o Irão, contraria esta posição de princípio. E nenhuma presidência dos EUA fez mais para destruir o frágil equilíbrio nuclear. A Revisão de Postura Nuclear (de Janeiro de 2002) prevê o desenvolvimento de novas armas nucleares e o seu uso no quadro de guerra, inclusivamente em ataques preventivos, medidas em clara violação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear de que os EUA é signatário. Bush declarou já oficialmente a sua intenção de desenvolver um programa de Sistema de Defesa Anti-Míssil que conduzirá certamente à escalada de produção nuclear de países como a China. Ademais, ao querer atacar o Iraque antes que este desenvolva ADMs e simultaneamente agir de forma tímida face à Correia do Norte, que possui capacidade de resposta, Bush lança claramente a sugestão de que a única forma de evitar uma agressão é precisamente desenvolver ADMs. A postura diplomática dos EUA, sobretudo no que diz respeito ao caso do Iraque, sugere uma tremenda arrogância e falta de vontade em negociações de boa fé, mesmo com aliados de longa data, que só fragilizam a segurança global.
Se em vez de petróleo fossem brócolos...
Em Dezembro de 2002, no programa televisivo 60 Minutes, Rumsfeld declarava um «disparate» a ideia de que o petróleo iraquiano motivava a presente escalada. Mas como vem sendo comentado, se o principal recurso do Iraque fossem brócolos não estaríamos enfrentando a presente crise. É óbvio que o petróleo faz parte da equação. O Iraque possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo depois da Arábia Saudita, e o seu petróleo de alta qualidade e fácil extracção constitui uma fonte de tremendo potencial de rendimento(10). A instauração de um regime clientelar no Iraque daria não só enormes lucros a companhias dos EUA e da Grã-Bretanha, em prejuízo das companhias francesas, chinesas e russas com quem o Iraque mantém de momento relações privilegiadas, mas daria também aos EUA a capacidade de ditar o preço mundial do petróleo e garantir a posição de supremacia do dólar como moeda de câmbio (desde 2000 que o Iraque vende o seu petróleo em troca de euros).
O petróleo não é simplesmente um recurso natural de grande rentabilidade, constitui também um produto básico central a toda a economia, ditando o valor de salários e os preços dos restantes produtos do mercado. E tem até à data escapado ao destino das outras mercadorias no processo de neoliberalização. A maioria das companhias produtoras de petróleo foram nacionalizadas entre 1969-73 e assim persistem. Por outro lado, é dos poucos sectores que possui um cartel internacional que fixa o preço do seu produto, a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP). A Administração Bush tem feito enorme pressão sobre os membros da OPEP, que podem torná-la numa força desfavorável aos interesses económicos dos EUA(11). A conquista do Iraque expande a esfera de influência dos EUA e oferece a oportunidade de minar a OPEP.
Faz falta uma alternativa
A agressão ao nível global tem sido acompanhada a nível interno por assaltos às liberdades civis, incluindo a prática de detenção de estrangeiros por tempo indeterminado, o uso de tortura, e a entrada em domicílios e escutas telefónicas sem mandado judicial. Em Fevereiro, o Centro para a Integridade Pública(12) obteve um rascunho confidencial da legislação, o Acto de Melhoramento da Segurança Doméstica, que expande o actual Acto USA PATRIOT a cidadãos dos EUA, incluindo provisões que permitem a retirada de cidadania e expatriação de indivíduos associados a «organizações terroristas». No início do ano, a presidência apresentou o Acto de Conhecimento Total de Informação(13), subsequentemente chumbado no Congresso, que visava criar uma gigantesca base de dados computorizada capaz de gerar informação de todo o tipo, incluindo padrões de uso de cartões de crédito e bibliotecas.
A insatisfação com inúmeros aspectos da política de Bush auto-reprimida pelo clima de patriotismo exacerbado tem vindo finalmente a exprimir-se num movimento anti-guerra que cresceu a um ritmo galopante desde o anúncio das intenções militares de Bush. Crescentemente, as manifestações que têm tido lugar por todo o país, e contam com a participação dos mais variados sectores da população, são expressões não só do desejo pela paz, mas também da recusa dos mais variados aspectos da política Bush, desde os ataques às liberdades civis, às escolhas orçamentais, à postura unilaterialista, e à submissão a interesses económicos. Mas os EUA precisam que surja uma verdadeira alternativa. E o mundo precisa de um contrabalanço aos EUA que promova verdadeiramente a paz, a cooperação e um desenvolvimento equitativo.
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1 - Desenvolvido durante a Administração de Bush Sr., contou entre os seus ideólogos Dick Cheney (então Secretário de Defesa), o General Colin Powell (presidente da Junta de Chefes de Estado) e Paul Wolfowitz (subsecretário de Estado de Defesa). Estes assumem agora as posições de vice-presidente, secretário de Estado, e subsecretário de Defesa, respectivamente.
2 - Lançada em Setembro de 2002. The National Security Strategy of the USA ( http://www.whitehouse.gov/nsc/nss.html )
3 - Iraqi Liberation Act.
4 - No seu mais recente livro, «Bush em Guerra», sobre os primeiros cem dias da presidência de George W. Bush pós 11 de Setembro, Bob Woodward recorda como a ideia de atacar o Iraque foi levantada por Rumsfeld na reunião do Concelho de Segurança Nacional no dia seguinte aos ataques terroristas.
5 - Leaked report rejects Iraqi al’Qaeda link, BBC, 5/Fev/2003
6 - Editorial do Independent/UK, 6/Fev/2003
7 - Sondagem conduzida para Knight Ridder por Princeton Survey Research Associates.
8 - Um slogan visto frequentemente em manifestações anti-guerra nos EUA clama por uma mudança de regime em casa.
9 - Como revela claramente a versão completa do documento que o Iraque teve de apresentar ao Conselho de Segurança da ONU descrevendo em detalhe estes programas.
10 - Como referência, estima-se que a produção de um barril de petróleo Iraquiano custe menos de USD$1.50, enquanto que o equivalente produzido no Texas pode custar para cima de $20.
11 - Incluindo o apoio ao golpe de Estado falhado na Venezuela contra Hugo Chávez, em Agosto de 2002.
12 - Center for Public Integrity ( http://www.publicintegrity.org )
13 - Total Information Awareness Act. O Gabinete seria liderado por John Poindexter, outrora condenado por mentir ao Congresso durante as audições Irão-Contras e posteriormente perdoado por George Bush, Sr