Um império orgulhosamente só
Para consumo interno e externo os EUA alimentaram durante meses a rábula do jogo democrático na ONU enquanto preparavam no terreno o caminho inexorável da guerra. Com toda a logística montada e mais de 250 000 homens no terreno, Bush não quer recuar.
Ao contrário do que sucedeu no passado recente com as intervenções norte-americanas em nome dos «direitos humanos» ou do «combate ao terrorismo», a questão iraquiana não concitou os apoios que Washington pretendia reunir para liquidar o primeiro alvo do seu famigerado «eixo do mal». Fosse por demasiado óbvio, tresandar a petróleo ou por inépcia dos seus autores, o plano de assalto à importantíssima região do Golfo não só não convenceu como dividiu os aliados tradicionais dos EUA. A retórica de cruzada dos bons contra os maus não surtiu efeito desta vez, e a denúncia do que realmente está em jogo foi feita por outros que não os suspeitos do costume.
Pouco habituados a serem contestados no seu próprio campo, os EUA revelaram uma incapacidade estrondosa para lidar com a oposição generalizada às teses que advogam e cometeram erros de tal monta que não lhes resta outra saída a não ser a da arrogância pura e dura, pouco consentânea com o verniz democrático que tanto prezam.
As alegadas «provas» contra o Iraque, mais furadas do que um passador, foram reduzidas a coisa nenhuma, revelando sem margem para dúvidas a enormidade da fraude que a administração Bush se propunha servir ao mundo travestida de verdade absoluta. O último exemplo diz respeito à existência de planos do Iraque para desenvolver armamento nuclear. Em entrevista à cadeia de televisão CNN, no fim-de-semana, o director da Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA), Mohamed El-Baradei, foi ainda mais explícito do que havia sido na apresentação do seu relatório ao Conselho de Segurança, na sexta-feira, e não hesitou em afirmar que os documentos apresentados por Colin Powell denunciando uma tentativa do governo iraquiano de importar urânio da Nigéria, em 2000, para fabrico de uma bomba atómica, são «uma falsificação». O director da AIEA foi igualmente peremptório quanto à falsidade das denúncias de que o Iraque teria tentado comprar canos de alumínio para o fabrico de armas nucleares.
Powell mentiu mais uma vez, em nome da administração norte-americana, mas mais uma vez não houve rectificações nem pedidos de desculpa, mas a insistência de que o Iraque é uma ameaça para os EUA e para o mundo, como Bush não se cansa de afirmar, por esta ordem.
Contra tudo e contra todos
Apesar de menos contundente do que o relato de El-Baradei, também o relatório do chefe da missão da ONU no Iraque, Hans Blix, sublinhou que os inspectores necessitam de mais tempo: «não de dias, não de anos, mas de meses», disse.
A pressa de Washington em atacar o Iraque não contempla tanto tempo, embora a presença e acção dos inspectores esteja a contribuir - que ironia! - para que o alvo a atacar se desfaça das suas cada vez mais elementares armas de defesa.
Incapazes de impor a sua vontade às Nações Unidas, os EUA desdobram-se em declarações sobre a perda de credibilidade da organização que eles próprios manipulam, pressionam e desrespeitam desde sempre. O boicote à UNESCO, as dívidas à ONU, o não acatamento da decisão do Tribunal Mundial de 1986 que condenou Washington pelos ataques à Nicarágua, o desrespeito há mais de 30 anos das resoluções condenando Israel (sucessivamente vetadas pelos EUA), as afirmações de Bush de que não reconhecerá nenhum tratado ou acordo que possa pôr em causa os interesses norte-americanos são apenas alguns exemplos do «respeito» que as Nações Unidas merecem da Casa Branca.
Para salvar as aparências a administração Bush empenhou-se em «convencer» os indecisos do Conselho de Segurança, usando toda a espécie de pressões, mas perante o possível fracasso foi deixando claro que avançará sozinho com os seus cães de fila. Este é o entendimento que tem do direito internacional.
A máquina de guerra foi posta em movimento, contra tudo e contra todos. Desde sexta-feira procede-se ao desembarque de material militar norte-americano na Turquia e ao seu transporte para o Sudeste do país, em direcção à fronteira iraquiana, apesar de o Parlamento turco não ter aprovado uma proposta nesse sentido. O presidente do Parlamento de Ancara soube do acontecimento pela televisão.
A desfaçatez com que os norte-americanos ignoram e violam decisões de estados soberanos e se ingerem nas suas políticas não se fica por aqui. Ainda na quarta-feira da semana passada o Departamento de Estado informou ter «pedido» à Alemanha e à Suécia que expulsassem diplomatas iraquianos acusando-os de serem «espiões».
Não menos significativo é o facto de um relatório interno da ONU agora vindo a público revelar que os EUA violaram numerosas vezes, desde 4 de Março, a área desmilitarizada traçada pelas Nações Unidas entre o Iraque e o Kuwait depois da Guerra do Golfo de 1991.
Segundo o relatório, as acções foram levadas a cabo por civis que afirmaram pertencer à Infantaria da Marinha norte-americana e ter permissão do governo kuwaitiano para as suas incursões. Na cerca electrificada que divide os dois países foram entretanto descobertas três aberturas de 25 metros, o suficiente para a passagem de tropas e carros de combate para a zona desmilitarizada. Os EUA têm mais de 100 000 militares no Kuwait prontas para o ataque do Iraque a partir do Sul.
Garantido que parece estar o veto da França e da Rússia, as reticências da China e Alemanha, e a oposição declarada e generalizada dos povos do mundo a uma nova guerra, é por demais evidente que nada ficará como antes após um ataque dos EUA ao Iraque.
O império ditará novas regras e os seus vassalos apressar-se-ão a segui-las. Mas nada terá futuro sem os povos e muito menos contra os povos. É tempo de resistir e de lutar.