Um império orgulhosamente só

Anabela Fino
A escassos dias de terminar o ultimato imposto ao Iraque - dia 17 - já não restam dúvidas de que os EUA, acolitados pela Grã-Bretanha, vão atacar o Iraque com ou sem o aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É o desfecho previsível da encenação há muito montada para lançar mão ao petróleo e a uma região do mundo considerada de «interesse vital» para os norte-americanos.

Para consumo interno e externo os EUA alimentaram durante meses a rábula do jogo democrático na ONU enquanto preparavam no terreno o caminho inexorável da guerra. Com toda a logística montada e mais de 250 000 homens no terreno, Bush não quer recuar.

Ao contrário do que sucedeu no passado recente com as intervenções norte-americanas em nome dos «direitos humanos» ou do «combate ao terrorismo», a questão iraquiana não concitou os apoios que Washington pretendia reunir para liquidar o primeiro alvo do seu famigerado «eixo do mal». Fosse por demasiado óbvio, tresandar a petróleo ou por inépcia dos seus autores, o plano de assalto à importantíssima região do Golfo não só não convenceu como dividiu os aliados tradicionais dos EUA. A retórica de cruzada dos bons contra os maus não surtiu efeito desta vez, e a denúncia do que realmente está em jogo foi feita por outros que não os suspeitos do costume.

Pouco habituados a serem contestados no seu próprio campo, os EUA revelaram uma incapacidade estrondosa para lidar com a oposição generalizada às teses que advogam e cometeram erros de tal monta que não lhes resta outra saída a não ser a da arrogância pura e dura, pouco consentânea com o verniz democrático que tanto prezam.

As alegadas «provas» contra o Iraque, mais furadas do que um passador, foram reduzidas a coisa nenhuma, revelando sem margem para dúvidas a enormidade da fraude que a administração Bush se propunha servir ao mundo travestida de verdade absoluta. O último exemplo diz respeito à existência de planos do Iraque para desenvolver armamento nuclear. Em entrevista à cadeia de televisão CNN, no fim-de-semana, o director da Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA), Mohamed El-Baradei, foi ainda mais explícito do que havia sido na apresentação do seu relatório ao Conselho de Segurança, na sexta-feira, e não hesitou em afirmar que os documentos apresentados por Colin Powell denunciando uma tentativa do governo iraquiano de importar urânio da Nigéria, em 2000, para fabrico de uma bomba atómica, são «uma falsificação». O director da AIEA foi igualmente peremptório quanto à falsidade das denúncias de que o Iraque teria tentado comprar canos de alumínio para o fabrico de armas nucleares.

Powell mentiu mais uma vez, em nome da administração norte-americana, mas mais uma vez não houve rectificações nem pedidos de desculpa, mas a insistência de que o Iraque é uma ameaça para os EUA e para o mundo, como Bush não se cansa de afirmar, por esta ordem.


Contra tudo e contra todos


Apesar de menos contundente do que o relato de El-Baradei, também o relatório do chefe da missão da ONU no Iraque, Hans Blix, sublinhou que os inspectores necessitam de mais tempo: «não de dias, não de anos, mas de meses», disse.

A pressa de Washington em atacar o Iraque não contempla tanto tempo, embora a presença e acção dos inspectores esteja a contribuir - que ironia! - para que o alvo a atacar se desfaça das suas cada vez mais elementares armas de defesa.

Incapazes de impor a sua vontade às Nações Unidas, os EUA desdobram-se em declarações sobre a perda de credibilidade da organização que eles próprios manipulam, pressionam e desrespeitam desde sempre. O boicote à UNESCO, as dívidas à ONU, o não acatamento da decisão do Tribunal Mundial de 1986 que condenou Washington pelos ataques à Nicarágua, o desrespeito há mais de 30 anos das resoluções condenando Israel (sucessivamente vetadas pelos EUA), as afirmações de Bush de que não reconhecerá nenhum tratado ou acordo que possa pôr em causa os interesses norte-americanos são apenas alguns exemplos do «respeito» que as Nações Unidas merecem da Casa Branca.

Para salvar as aparências a administração Bush empenhou-se em «convencer» os indecisos do Conselho de Segurança, usando toda a espécie de pressões, mas perante o possível fracasso foi deixando claro que avançará sozinho com os seus cães de fila. Este é o entendimento que tem do direito internacional.

A máquina de guerra foi posta em movimento, contra tudo e contra todos. Desde sexta-feira procede-se ao desembarque de material militar norte-americano na Turquia e ao seu transporte para o Sudeste do país, em direcção à fronteira iraquiana, apesar de o Parlamento turco não ter aprovado uma proposta nesse sentido. O presidente do Parlamento de Ancara soube do acontecimento pela televisão.

A desfaçatez com que os norte-americanos ignoram e violam decisões de estados soberanos e se ingerem nas suas políticas não se fica por aqui. Ainda na quarta-feira da semana passada o Departamento de Estado informou ter «pedido» à Alemanha e à Suécia que expulsassem diplomatas iraquianos acusando-os de serem «espiões».

Não menos significativo é o facto de um relatório interno da ONU agora vindo a público revelar que os EUA violaram numerosas vezes, desde 4 de Março, a área desmilitarizada traçada pelas Nações Unidas entre o Iraque e o Kuwait depois da Guerra do Golfo de 1991.

Segundo o relatório, as acções foram levadas a cabo por civis que afirmaram pertencer à Infantaria da Marinha norte-americana e ter permissão do governo kuwaitiano para as suas incursões. Na cerca electrificada que divide os dois países foram entretanto descobertas três aberturas de 25 metros, o suficiente para a passagem de tropas e carros de combate para a zona desmilitarizada. Os EUA têm mais de 100 000 militares no Kuwait prontas para o ataque do Iraque a partir do Sul.

Garantido que parece estar o veto da França e da Rússia, as reticências da China e Alemanha, e a oposição declarada e generalizada dos povos do mundo a uma nova guerra, é por demais evidente que nada ficará como antes após um ataque dos EUA ao Iraque.

O império ditará novas regras e os seus vassalos apressar-se-ão a segui-las. Mas nada terá futuro sem os povos e muito menos contra os povos. É tempo de resistir e de lutar.



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A guerra anunciada

O ataque dos EUA ao Iraque está iminente. Quando as bombas começarem a cair sobre Bagdad e tiver início a chacina não será apenas o povo iraquiano a tombar vítima do império norte-americano. Nesse preciso momento consumar-se-á a morte do direito e da ordem internacionais como os conhecemos até agora, e sob o clamor da bombas, numa orgia de sangue e destruição, Washington dará à luz o monstro que há muito vem alimentando nas suas entranhas.
Os argumentos invocados pelos senhores da guerra instalados na Casa Branca para atacar o Iraque não passam de pretextos facilmente desmontáveis, como se comprova no dossier que o Avante!  hoje publica. O repúdio dos povos de todo o mundo não fez ainda abortar este atentado contra a humanidade, mas por mais dolorosa que seja a era que agora se inicia, ela é simultaneamente o princípio do seu próprio fim. Quando mais nada resta senão a força o poder é efémero.

Neste dossier:

• Anabela Fino - Um império orgulhosamente só
• André Levy - Fazer a guerra antes que o barro seque
• Jorge Cadima - Mentiras e crimes de guerra
• Luís Carapinha - A Rússia insustentável
• Miguel Urbano Rodrigues - A humanidade contra o IV Reich
• Rui Paz - Os alemães descobrem os "frankensteins" americanos
• Rui Namorado Rosa - Uma guerra contra o mundo

Fazer a guerra antes que o barro seque

Enquanto o mundo reagia com horror às imagens dos ataques terroristas do onze de Setembro de 2001, elementos da Administração Bush viam o evento como uma fantástica oportunidade. Assim o descreveu explicitamente a Conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice: «Um tremor de terra da magnitude do 11 de Setembro pode mudar as placas tectónicas da política internacional. [O pós 11 de Setembro marca um período] não só de grande perigo, mas também de enorme oportunidade. Antes que o barro solidifique de novo, os EUA e os nossos aliados devem mover-se decisivamente para tirar proveito das novas oportunidades.»

Mentiras e crimes de guerra

«O Mundo assinalará que a primeira bomba atómica foi lançada sobre Hiroxima, uma base militar. Tal facto resulta da nossa intenção de, neste primeiro ataque, evitar tanto quanto possível a morte de civis». Estas palavras do então presidente dos EUA, Harry Truman, foram proferidas no dia 9 de Agosto de 1945, num discurso transmitido pela rádio(1). Aquilo que realmente permitiram ao mundo assinalar é que a natureza criminosa e genocida da classe dirigente norte-americana é apenas igualada pelo seu cinismo e pela sua incomparável capacidade para a mentira mais despudorada.

A Rússia insustentável

Neste início de século, a guerra chega de novo a zonas não muito distantes das fronteiras da Federação Russa pela mão dos Estados Unidos. A intervenção militar americana no Afeganistão, a pretexto da denominada campanha internacional contra o terrorismo decorrente dos atentados de 11 de Setembro, que mereceu o apoio da direcção russa, foi o prelúdio para um ano negro para os interesses e segurança da Rússia: 2002 ficou assinalado, nas palavras do general Ivachov, antigo alto funcionário do Ministério da Refesa russo, demitido pelo actual ministro da tutela após pressões de Washington, por o «recuo geopolítico de Moscovo em todas as direcções estratégicas» (Sovietskaya Rossia, 06.03.03).

A humanidade contra o IV Reich *

O 15 de Fevereiro de 2003 ficará como data de viragem na grande aventura da humanidade.

Em centenas de cidades da Europa, da Ásia, da América, da África e da Oceânia milhões de pessoas saíram nesse dia às ruas para se manifestarem contra a guerra, respondendo ao apelo do Fórum Social Mundial. Nunca antes acontecera algo similar. Foi a primeira manifestação de protesto global da História.

Os alemães descobrem os frankensteins americanos

O meio milhão de pessoas que a 15 de Fevereiro se manifestou em Berlim e as centenas de milhares que nos últimos meses têm vindo a fazer ouvir o seu protesto nas ruas, confirmam que a esmagadora maioria do povo alemão recusa apoiar mais um ciclo de guerras imperialistas. A mobilização pela a paz atinge níveis inéditos na história da Alemanha, apesar de uma correlação de forças internacional muito mais desfavorável às forças progressistas do que a que se verificava nos anos oitenta, no momento das grandiosas manifestações contra o estacionamento dos Persching II.

Uma guerra contra o mundo

No confronto pela hegemonia económica e política mundial, o declínio do império britânico é perceptível desde o último quartel do século XIX. Tornou-se então patente a intensa competição entre as potências emergentes, com destaque para os EUA e a Alemanha, que haviam concluído os respectivos processos de consolidação interna e iniciado já a expansão externa. A Conferência de Berlim (1884-85), que realizou a «partilha do mundo» entre as potências europeias, é sintomática do declínio do império britânico, e assinala um novo passo na escalada da globalização capitalista.