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O sentido religioso do voto (II)

RELIGIÔES  •Jorge Messias

Só no IV milénio AC a noção de Estado se viria a afirmar. Nas margens do Mar Mediterrâneo, verdadeira matriz da Europa, fundaram-se sucessivamente os impérios do Egipto, da Assíria e da Babilónia. Todos eles com sistemas económicos baseados na servidão. O esclavagismo era, nesses tempos, fenómeno natural. Até morrerem, os vencidos deviam servir os vencedores. Representavam força, sempre disponível, do trabalho gratuito. No Egipto, tornava-se preciso dominar as cheias do Nilo e irrigar os campos ; na Assíria e na Babilónia, com a construção das grandes cidades, fixavam-se as populações nómadas. O comércio florescia. O recurso à mão-de-obra escrava (captivos de guerra, devedores insolventes, condenados em juízo) permitiu concretizar ambiciosos projectos. Geraram-se fortunas e cerca do ano 2000 AC as populações mesopotâmicas já se organizavam socialmente em classes distintas: livres, semi-livres e escravos. O poder pertencia às elites dirigentes dos monarcas (todo o poder numa só pessoa) e dos sacerdotes, servidores dos ritos seguidos nas cidades-sede da governação. Para além da administração pública e da manutenção da ordem, políticos e ministros da religião organizavam a produção, controlavam as obras públicas e as finanças e detinham extensos latifúndios.

O ordenamento político do Estado avançou rapidamente. Comparativamente, as religiões caminhavam com maior lentidão. Persistiam, neste caso, os rituais antigos dos sacrifícios totémicos tribais, as liturgias agrárias da fertilidade, dos adoradores do Sol e dos deuses animais - como o falcão, o carneiro, o boi, o touro, a vaca, o leão, a serpente, o chacal, o cão, o abutre, o gato - ou os cultos dos mortos e da salvação. Começavam, então, a formar-se em torno dos templos núcleos de intelectuais (astrónomos, matemáticos, arquitectos, contadores, colectores e escribas). Com o tempo, os técnicos passaram a tecnocratas, ao serviço comum do estado e da religião oficial. Constituiram-se novas minorias. O aparelho do Estado ficou a depender dos quadros técnicos e políticos que os templos lhe forneciam. Por volta de 1.800 AC, Hamurabi, condutor das guerras e sacerdote do deus Marduk, assumiu o poder na cidade assíria de Babel. O acontecimento ditou o curso de toda uma civilização. A pequena localidade transformou-se em capital de um império e a sua obscura divindade - Marduk - foi declarada «senhor do mundo». Hamurabi fez então editar a primeira grande recolha de leis de Estado que a história conhece - o Código de Hamurabi. No novo códice, a importância relativa dos deuses é disciplinada. O deus Marduk é politicamente protoganizado pela divindade Enlil ; Nergal é o Marduk da guerra; Nebo, o Marduk do comércio; Ardad, o Marduk que controla as chuvas; etc. Tal como, política e socialmente, se encontrara a passagem do poder disperso (pessoal, de grupo, de tribo, de clã) ao poder central (monarca, imperador, sumo sacerdote), assim também, a nível religioso se verificou uma clara centralização do poder. Na Babilónia contavam-se cerca de 2.500 divindades (cananeias, fenícias, sírias, aramaicas, hebraicas e árabes). A situação religiosa era verdadeiramente caótica e impedia a consolidação da unidade e a expansão do império. Os sacerdotes de cada divindade constituíam cortes pessoais formadas pelos seus ministros, filhos e servos. Com Hamurabi, todo este cenário se alterou profundamente: Marduk, o deus de Babel, absorveu os títulos, as funções e os mitos das restantes divindades e passou a ser também conhecido como Baal (o patrão); a hierarquia sacerdotal reforma-se tomando como imagem o poder político dominado pelo rei (melek), pelo senhor (adon) ou pelo regente executivo (ilah, mais tarde al-ilah, finalmente Allah, o único deus). Assim se conseguiu, na cidade e império de Babel ( que significa «Porta dos Deuses») - mais de dois milénios antes do aparecimento do cristianismo e da sua organização canónica - um primeiro alinhamento entre o Estado e a Religião. Não se tratava ainda, evidentemente, do processo acabado que viria a afirmar-se, nas hierarquias monoteístas futuras, com a fusão do poder imperial e do poder religioso.

Mas ficavam lançados os alicerces de uma fortíssima estrutura teocrática.

«Avante!» Nº 1472 - 14.Fevereiro.2002