Fórum Social Mundial ...
A luta de classes continua
a ser o motor da história
Miguel Urbano Rodrigues
O II Fórum Social Mundial transcorreu como o I numa atmosfera de fusão do real com o irreal. O cenário foi novamente a cidade de Porto Alegre. Mas a dimensão do grande acontecimento agigantou-se. Ali se concentraram durante seis dias mais de 50 000 pessoas, muitas vindas de 131 países, criando pela presença e pelo discurso uma atmosfera que tinha algo de extraterrestre. A força da esperança permitiu que a capital gaúcha se transmudasse na cidade ideal, pulmão e vitrina da sociedade imaginária desejada, que responda um dia ao slogan do Fórum: outro mundo é possível!
No
grandioso e belíssimo evento o que uniu a babel de forasteiros, gerando
um clima de comovente fraternidade, foi, paradoxalmente, uma atitude de recusa:
a rejeição unânime do modelo de sociedade que o sistema
de poder cujos representantes estavam reunidos em Nova Iorque no Fórum
Económico, dito de Davos, tenta impor ao conjunto da humanidade.
A esmagadora maioria dos habitantes da Terra não aceita submeter-se ao novo tipo de escravidão que resulta do funcionamento da engrenagem da globalização neoliberal. Isso ficou mais uma vez transparente em Porto Alegre.
No espaço de reflexão e debate do Fórum dos oprimidos a imaginação não encontrou fronteiras que tolhessem a sua criatividade. Com os pés no século XXI e o olhar no futuro, este Fórum de desafio e luta foi, como o anterior, marcado por um espírito libertário. Havia painéis para debater qualquer tema. Até as «trabalhadoras do sexo» conseguiram um espaço para discutirem os seus problemas. Mas não há motivos para medos. A unidade possível que leva a grandes vitórias, nasce sempre da diversidade.
Era inevitável que num encontro como este o debate fosse canal de ideologias assumidas e de ideologias não consciencializadas, que modelam formas de agir e pensar sem que os autores disso se apercebam. Não há transformação revolucionária da vida sem teoria que mobilize para o combate e sem uma praxis que a traduza.
A indignação perante a trágica herança do governo do G-7 hegemonizado pelo sistema de poder imperial dos EUA não gera por si só as condições que permitam o combate eficaz a esse inimigo e a derrota final do mesmo sistema. Daí a tentação, patente em algumas das grandes conferências, de inverter prioridades. Imaginar o futuro, «o outro mundo», e esboçar os perfis de uma sociedade diferente é bem mais fácil do que mobilizar esforços e consciências para a tarefa sem a qual não se poderá construir esse futuro: a destruição do sistema de dominação económica, política, militar e cultural que oprime a humanidade.
Não há que esconder a evidência. No Fórum compareceram algumas personalidades que, na abordagem da temática das alternativas, sugeriram caminhos e esboçaram projectos que traduzem mundividências orientadas para a possibilidade de uma reforma do capitalismo. Essa tendência manifestou-se num discurso que deixa transparecer o desejo de repetir hoje o que Lord Keynes pretendeu nos anos 20. Para salvar o capitalismo ele preconizou a sua humanização. Acontece que o capitalismo é por sua essência desumano, como a evolução da história demonstrou. O Estado do Bem Estar, aliás nunca concretizado, não evitou a caminhada para as calamidades da globalização neoliberal.
Por isso mesmo creio que o discurso sobre o mítico Governo Mundial, a apologia da não menos fantasmática Assembleia dos Parlamentos do Mundo e outras utopias paralisantes, em vez de nos aproximarem de objectivos ao nosso alcance são desmobilizadores. No cerne dessa oratória é identificável a velha ilusão de que o capitalismo pode ser reformado em beneficio das grandes maiorias. Não menos negativa me parece a insistência no discurso (felizmente minoritário) que desconhece ou subalterniza a problemática do poder. Seria uma atitude infantil admitir que a derrota da engrenagem imperial que ameaça a própria continuidade da humanidade está para breve. Não está. É um objectivo muito distante. Mas sugerir que tudo terá de começar do zero, pela impossibilidade de se enfrentar um inimigo poderosíssimo, afigura-se-me um erro perigoso.
Uma imensa diversidade
O Fórum confirma a vitalidade dos movimentos sociais e as imensas potencialidades que a sua participação crescente nas grandes lutas em curso abre no combate à globalização neoliberal. Mas a ideia de que num processo de arranque espontâneo, utilizando as instituições do próprio sistema (como sugere Koffi Annam na sua mensagem ao Fórum) se pode transformar o mundo, eliminar a miséria e a opressão, é puramente romântica. Sem organizações revolucionárias estruturadas, sem partidos de esquerda empenhados na destruição do capitalismo, não será possível construir os instrumentos políticos capazes num contesto de ampla unidade actuante, de erradicar do planeta os males gerados pela engrenagem neoliberal. Apenas com boas intenções não se muda a vida.
A vitória final contra as forças que encaminham a humanidade para o abismo somente poderá resultar da convergência de esforços de movimentos, organizações e partidos de mundividências muito diferenciadas. Mas não contribuem para a unidade possível cito alguns exemplos - aqueles que sonham com um governo mundial e um parlamento mundial, mas evitam condenar a agressão imperial contra o povo do Afeganistão e a política fascizante do governo de Israel e criticam as FARC colombianas por recorrer à luta armada na sua guerra de libertação.
Obviamente a convergência na condenação do sistema que
se rejeita coincidiu no Fórum com uma imensa diversidade no terreno das
ideias sobre o amanhã possível. Na cosmoarena de Porto Alegre,
além das chamadas grandes conferências dos quatro eixos principais,
houve mais de 700 oficinas e seminários, entrevistas colectivas, depoimentos,
etc. Tanta oferta político-cultural colocou milhares de participantes
ante opções difíceis pela impossibilidade de acompanhar
sessões simultâneas.
![]() |
Comunistas portugueses presentes em Porto Alegre
|
Claro que houve actos e oradores que polarizaram atenções. Naom Chomsky empolgou como sempre aqueles que o ouviram. É reconfortante escutar a palavra de um grande e corajoso humanista norte-americano que sabe descer às entranhas do monstro na denúncia dos crimes do imperialismo. Samir Amin foi outra grande e lúcida presença.
Mário Soares apareceu em Porto Alegre. Desfilou na cabeça da manifestação, na abertura do Fórum. Deu entrevistas. O seu nome figurava como presidente da Inter Press Service, a agência que editou o jornal do Fórum. Foi grande o seu esforço para projectar uma imagem de esquerda. Mas não é apenas a sua trajectória política que nega a viabilidade de tal aspiração. O discurso político de Mário Soares não é apenas pobre de conteúdo e revelador de uma mal arrumada colecção de lugares comuns. O ex-presidente, ao abordar os grandes problemas do nosso tempo, não consegue esconder a sua mundividência. Ela o levou a ligar a sua luta à defesa do capitalismo, em cumplicidades turvas. Percebe-se que gostaria no Inverno da vida de recuperar a imagem de esquerda do início da sua vida política, na juventude. Mas não consegue. Quem o lê ou escuta identifica logo o político que pertence ideologicamente à família da direita.
A presença dos partidos
O PT, como partido do Governo e da Cidade, deu naturalmente uma contribuição decisiva para o êxito do Fórum. Não é de estranhar que Lula, candidato à Presidência da República pela coligação de forças progressistas que se esboça, tenha sido calorosamente aplaudido onde quer que se apresentou e usou da palavra.
![]() |
Na Marcha da Paz que deu início ao Fórum,
o símbolo da gloriosa «Guerrilha do Araguaia", nascida
em 1972 por iniciativa do PC do Brasil, foi levantado por muitos como
uma bandeira
|
Mas outros partidos de esquerda tomaram iniciativas que assumiram significado relevante no espaço de reflexão único que foi o Fórum. Entre elas destacou-se o acto promovido pelo PC do B no grande Auditório Municipal. Com a presença do governador e do prefeito, que se identificaram plenamente com o espírito do Encontro nas saudações dirigidas aos oradores, quatro dirigentes comunistas da América Latina e da Europa pronunciaram-se sobre a temática do Fórum e analisaram aspectos fulcrais da situação existente nos seus países à luz da antinomia capitalismo-socialismo. Foram eles Renato Rabelo, presidente do Partido Comunista do Brasil, Gladys Marin, secretária-geral do Partido Comunista do Chile; Pedro Ross, membro do Bureau Político do CC do Partido Comunista de Cuba; e Albano Nunes, membro do secretariado do CC do Partido Comunista Português, responsável pelas Relações Internacionais.
Sendo um dos 51 000 que participaram no Fórum de Porto Alegre, senti, como quase todos, não ter podido acompanhar iniciativas que se realizavam simultaneamente, por vezes em lugares muito distantes da cidade.
Pessoalmente intervim, como relator, numa mesa redonda e num Seminário-Oficina, ambos interessantes. Mas das sessões em que participei a que me deixou uma lembrança mais forte e profunda foi a que me levou ao Acampamento da Juventude. Juntamente com Renato Rabelo e o comandante Julian, das FARC-EP da Colômbia, tive a oportunidade de me dirigir aos 500 jovens, de muitas nacionalidades, que, sentados no solo, ocupavam a metade da arena que fazia as vezes de auditório. Falei de muitas coisas, mas sobretudo da guerra imperial que atingiu o povo do Afeganistão e da actualidade do pensamento revolucionário de Bolivar. Para mim aquelas horas de convívio foram inesquecíveis. Uma presença inesperada contribuiu para a emoção da jornada. O encontro foi dirigido por Ana Prestes, neta de Luís Carlos Prestes, hoje militante do PC do B. Recordei que a tomei nos braços em Moscovo em 1979, em casa do avô, quando ela tinha completado um ano.
O povo nas ruas
O Fórum abriu com um desfile de dezenas de milhares de pessoas. Na véspera do encerramento uma manifestação contra a ALCA mobilizou ainda mais gente. Meia dúzia de anos atrás iniciativas como estas não teriam sido possíveis. Hoje elas traduzem a disponibilidade crescente para a luta de segmentos cada vez mais amplos das vítimas da «nova economia» sustentada por um sistema de poder que não hesita em recorrer ao terrorismo de Estado para impor pela violência uma (des)ordem mundial que faz da globalização neoliberal o instrumento do domínio planetário das transnacionais.
É inegável que Porto Alegre foi novamente a sede ideal para o Fórum. E voltará a sê-lo no próximo ano. Dificilmente se encontraria hoje no mundo uma cidade como a capital do Rio Grande do Sul onde o Governador do Estado e o Perfeito encabeçaram os grandes desfiles, identificados com as aspirações dos manifestantes e a sua recusa da ordem imperial. Mas ombro a ombro com a gente gaúcha marcharam brasileiros de todos os Estados e milhares de homens e mulheres vindos dos quatro cantos da Terra, carregando o protesto e a esperança de movimentos e organizações dispostos a fazer a demonstração de que «outro mundo é possível».
Foi esse estrondo de um clamor popular de significado universal que ecoou pelo mundo, carregando mensagens que chegaram até aos responsáveis pelo desgoverno do planeta e pela pobreza crescente de países que cuja população representa quatro quintos da humanidade.
Uma dessas mensagens inquieta de modo especial os senhores do capital e os
teólogos e ideólogos da globalização neoliberal
glorificada como eterna em Davos, santuário do dinheiro. Nesta época
de perversão desinformativa. Porto Alegre tornou impossível ocultar
uma evidência. O Fórum, ao repudiar a globalização
neoliberal, condenar as guerras imperiais, recusar a ALCA, reafirmar a sua certeza
de que dos choques sociais e económicos e do debate criador em curso
nascerá a alternativa à crise de civilização que
atinge a humanidade permitiu também iluminar uma realidade: na
grande confrontação que opõe a maioria esmagadora da humanidade
à minoria que a oprime e explora, a luta de classes está presente
e desempenha um papel fundamental. Continua a ser o motor da história.
«Avante!» Nº 1472 - 14.Fevereiro.2002