Artigo anterior  


Cruz e encruzilhada (6)

RELIGIÕES • Jorge Messias

O que faz Bartolomeu dos Santos escolher para tema da sua mais recente série de gravuras, produzidas entre 1999 e a primeira metade deste ano, a absurdeza da guerra com tudo o que lhe é inerente: violência, destruição, a lei impositiva dos vencedores que lhes dá o direito de julgar para condenar os vencidos, o ruído implacável da gritaria das personagens de ambos os lados e das armas que atacam e das que respondem?

Não deixa de ser curioso recordar que enquanto Marx e Engels escreviam o Manifesto e o povo de Paris se batia nas barricadas de 1848, dominava as instituições francesas uma aliança parlamentar entre a igreja e a monarquia. É certo que nem o partido católico centrista ( ainda ele não se reclamava democrata ), nem as formações monárquicas podiam, isoladamente, alcançar a maioria absoluta. Mas os dois terços necessários às grandes decisões nunca fugiram à coligação. Thiers, a grande figura emblemática do Partido da Ordem Moral, presidia à Assembleia francesa. E o facto de qualquer das componentes do centro-direita ser obrigada a negociar com a outra as suas posições, apenas contribuía para reforçar a unidade da aliança ultraconservadora. Os católicos davam-se bem com os socialistas utópicos, na base de um certo humanitarismo, mas era com os monárquicos e com os representantes da opulenta alta burguesia que traçavam a sua estratégia política. Política, como é evidente, de classe e de conveniência.

Esta linha de acção desenvolveu-se nas décadas seguintes e determinou os brutais massacres dos revolucionários da Comuna de Paris. Os sociais-cristãos alimentavam os jogos de sedução com os socialistas mas alinhavam com a extrema-direita na sua política repressiva. Simultaneamente, encaminhavam os seus interesses próprios a partir da fixação de pontos de apoio no interior dos grupos seus aliados e de um partido socialista vacilante. A social-democracia talhou, deste modo, os degraus de que se serviram os nazis alemães e os fascistas italianos nas fases de ascensão ao poder e foram os grandes impulsionadores de regimes como os de Franco, de Pétain, de Pinochet, de Salazar e, mais recentemente, de Haider e de Berlusconi. Quanto aos namoros com os socialistas, nunca duram muito tempo. Os partidos católicos sempre se serviram dos socialistas como trampolim descartável. Face às encruzilhadas da História, a democracia cristã acaba, invariavelmente, por encaminhar-se para a direita e para o abandono da doutrina social que afirma respeitar. Ainda que, por razões de ordem táctica, continue a proclamar o catolicismo como sua ideologia e se absolva dos actos brutais e das vergonhas morais que pontuam o seu caminho.

Encruzilhada sem cruz ?

Não custa admitir que, sem mensagem própria, sem utopia, sem programa ideológico e de acção a que chame seu, a igreja se esvazie progressivamente de sentido. Para ter, a igreja precisa do capitalismo. E o capitalismo, para ser, não pode pelo menos por enquanto, passar sem a igreja. Se cruz, por um lado, pressupõe vagamente o oposto do cifrão, não soou ainda a hora dos governos dos ricos se assumirem cruamente como senhores da exploração e da vida ou morte dos homens. O tempo por enquanto é o da igreja. Só ela pode emprestar ao capitalismo a cobertura moral de que ele necessita. Por isso, os grandes empresários dizem agora, a cada passo : «a Ética dá lucro !..»

Quanto ao eventual partido democrata-cristão que indecisamente se anuncia, os indícios revelados traduzem perplexidade por parte dos bispos e a ansiedade dos grandes patrões. Hipotecar a cruz e atravessar uma ponte sem regresso ? Queimar etapas, forçar a encruzilhada e avançar só pelos próprios meios ? Aceitar substituir a cruz pelo cifrão? Esperar que a hierarquia se decida e sacrificar oportunidades únicas ? Tudo parece aventura e desespero.

Aguarde-se, para ver. Mas vigie-se e observe-se. Pode-se ter a certeza de que, neste mesmo momento, esmagadoras massas de capitais e gigantescos grupos de pressão procuram, secretamente, saídas e compromissos que garantam as suas ambições. Quando isto acontece em quadros semelhantes aos actuais, as massas populares e as suas vanguardas políticas podem ter a certeza antecipada de que duros e dolorosos combates se aproximam que exigem a construção acelerada de baluartes de resistência. Mas pode, afinal, acontecer que todos estes prenúncios se revelem meras fantasias imaginadas por mentes apavoradas com a sua ruína anunciada. Se assim for, ainda bem.

Veremos.

«Avante!» Nº 1458 - 8.Novembro.2001