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Artes Plásticas
Ler o Universo
e adivinhar o futuro

ARTES PLÁSTICAS • Manuel Augusto de Araújo

O que faz Bartolomeu dos Santos escolher para tema da sua mais recente série de gravuras, produzidas entre 1999 e a primeira metade deste ano, a absurdeza da guerra com tudo o que lhe é inerente: violência, destruição, a lei impositiva dos vencedores que lhes dá o direito de julgar para condenar os vencidos, o ruído implacável da gritaria das personagens de ambos os lados e das armas que atacam e das que respondem?

Porquê este tema, quando as torres do World Trade Center ainda estavam a meses de se desmoronarem, nos Balcãs reinava a pax norte-americana e a Palestina continuava cercada por um todo poderoso e mouco vizinho a que continuava a atirar pedras e alguns kamikazes?

Porque explorava Bartolomeu dos Santos este tema, quando o clima de guerra tinha baixa intensidade e era uma quase presença convivente?

Porque, como Paul Klee escreveu, a condição do artista é comparável à do tronco de uma árvore (...) mantendo-se no seu lugar, que é o tronco da árvore, ele só deve receber e transmitir o que lhe chega das profundidades(...). Dito de outro modo, o artista enraizado na realidade, adquire o conhecimento da vida e transmite esse conhecimento aos homens através das obras que produz e que são a imagem e a consciência do seu tempo.

Enigmaticamente, esse conhecimento, que se concretiza «não quando este (o artista) exprime opiniões sobre o mundo, mas no momento em que a sua visão se faz gesto» (Merleau-Ponty), torna-se, muitas vezes, premonitório.

Goya, anos depois dos Desastres da Guerra, forjados na experiência directa que viveu com a aventura napoleónica em Espanha, revela em os Caprichos e os Disparates, um mundo de violência e farsa que viria muito posteriormente. Picasso, depois de Guernica, pinta várias Mulher que chora, onde o enorme sofrimento, que transparece da desarticulação dos planos do rosto, das linhas quebradas, dos olhos sobrepostos, das bocas rasgadas, das lágrimas como gotas de sangue, só será plenamente entendido anos depois, com a revelação dos horrores de Auschwitz e Buchenwald.

Este antecipar o que está para vir não se restringe ao campo social.

Beethoven, com os audaciosos desenvolvimentos harmónicos da Grande Fuga, aventura-se por universos sonoros que pressagiam um ainda muito distante futuro, tal como Rimbaud adiantou em décadas a construção poética ou Giorgione, nos finais do século XV e princípios do XVI, já representava a luz e a sombra com cores vivas e separadas, o que tem séculos de avanço sobre as ousadias modernistas dos finais do século XIX, ou Shakespeare que, com maestria deslumbrante, desenha personagens psicologicamente tão diversas e complexas que não se deixam corroer pelo tempo ainda que historicamente estejam datadas.

É essa agudeza que faz os artistas perfurar o conhecimento do mundo, do reino deste mundo e do mundo da arte, que é um outro mundo dentro deste nosso mundo.

Em Bartolomeu dos Santos o que estava para vir e que agora se vive explodem num ambiente bélico,em que se movem com ferocidade incontrolada uns seres, quase(?) todos ratos, muito pouco apaziguadores, envolvidos em frenéticas actividades absurdas, lutando contra máquinas de guerra ,conduzidas pelos seus irmãos-inimigos sob a vigilância de comentários acutilantes que o artista desenha, não para acrescentar compreensão ao desenho mas para o completar.

Esses seres intimidantes são indistintamente aliados e adversários. E ao tornar praticamente indecifrável quem são uns e outros, porque é impossível, em qualquer das gravuras, encontrar um sinal que os diferencie,o s que agora estão aqui em terra ameaçando quem está invisível dentro de um helicóptero poderão ser os mesmos que ali vão de avião para bombardear os que voltaram à terra cumprida a missão a bordo do helicóptero.

Na realidade são todos nossos inimigos.

Bartolomeu dos Santos, mestre no uso da água-tinta e da água-forte, manobra com tamanho virtuosismo essas técnicas tradicionais da gravura que as apaga, de modo a não nos distrairmos no pormenor e ficarmos atentos ao que é essencial em todo este ambiente inquietante, sombrio, que sublinha a forte e evidente mensagem contra estas guerras, sem a tornar num elemento estranho a que a arte se subordine.

Exposição de gravura
de Bartolomeu dos Santos

na Galeria 111 – Lisboa

«Avante!» Nº 1458 - 8.Novembro.2001