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À memória de
Maria Machado

• Glória Maria Marreiros

Maria dos Santos Machado,
militante comunista, professora,
natural de Calheta (Açores),
falecida no dia 4 de Outubro de 1958
.
Maria Machado


Maria

Ao recordar-te, com os que te amaram, e ao falar de ti para os mais jovens, começarei com as tuas próprias palavras, ou seja, com o testamento político que deixaste ao Partido Comunista Português, escrito poucos dias antes da tua morte:

«A minha fé nos destinos do Povo trabalhador não morre comigo, perpetua-se em todos vós, queridos irmãos meus. O futuro será vosso. Nenhum sacrifício terá sido inútil, A Humanidade encontrará o seu caminho. Que importa, pois, que eu não assista à apoteose da Humanidade?»

O testamento define-te, Maria Machado.

Foi num Outubro diferente deste Outubro de 2001, que a morte te levou. A repressão seguiu os nossos passos, quando, tristes por te vermos partir te acompanhámos ao cemitério do Lumiar. As máquinas fotográficas, dos agentes da pide mal disfarçados, fixaram a dor dos nossos rostos amalgamada com a decisão que nos deixaste por herança. Vejo-te ainda, Maria, com a morte cingindo precocemente o teu corpo robusto, gritando: Morro, morro feliz, vi o Povo Português na rua. Moravas perto da praça José Fontana e o Povo corria para aclamar e ouvir no Liceu Camões, o General Humberto Delgado, candidato à Presidência da República. Era Maio de 1958. Os cavalos avançavam sobre a multidão e as espadas brilhavam no ar ameaçadoramente. Era um certo Maio, muito antes ABRIL! A Guarda Nacional Republicana e a Polícia agrediam homens e mulheres, cidadãos que apenas desejavam exercer o direito de ouvir o seu candidato preferido.

Encontravas-te muito doente. A última prisão tinha sido uma machadada na tua débil saúde. Havias saído meses antes de Caxias para onde tinhas sido levada com uma perna fracturada, na companhia de toda a família Almeida que, por amizade e por solidariedade recebera em sua casa situada na rua da Palma. Como não podias caminhar, a polícia arranjou uma padiola e, aos ombros de dois pides, surgiste na rua apinhada de gente: De lá, do alto da padiola, gritavas para a multidão: somos antifascistas! Estamos a ser presos pela pide! Dessa vez - foi a 4.ª prisão - acusaram-te de prestares assistência aos presos políticos e de pertenceres à Comissão de Amnistia. Estiveste presa durante 2 anos e, nesse período ainda sofreste a punição de um mês sem correspondência por, alegadamente, teres dirigido uma carta ao Director do Depósito de Presos de Caxias, em termos injuriosos, que demonstram o propósito de desrespeitar esta polícia (sic). Não desistindo de continuar a perseguir, por todos os meios, quem lhe caísse na alçada, a pide, depois da tua libertação, viria a pressionar a senhoria que te alugara um quarto, para te pôr na rua por seres comunista.

A senhora não tinha nenhum motivo de queixa da tua pessoa mas receava as represálias se não satisfizesse a imposição. Não sabia como dizer-te para saíres sem contar a verdade e então arranjou a seguinte desculpa, à qual, apesar da situação, com o teu sentido de humor, achaste graça: ela era espírita e então resolveu dizer-te que o espírito de António José de Almeida lhe pedira para te avisar de que devias sair daquela casa o mais brevemente possível porque ali corrias perigo. Inteligente, compreendeste a manobra da pide e os receios da senhora. Não te poupando ao sacrifício mudaste de casa. O médico tinha-te recomendado repouso absoluto mas tu, para não incomodares, preparaste os teus haveres e quando os camaradas te foram buscar já se encontrava tudo pronto e tu.. cansadíssima. O teu coração estava muito doente, nós sabíamos. Se a pide, ao menos nessa altura, te tivesse deixado tranquila, quem sabe, Maria... quem sabe? Mas «eles» nunca esqueceram o crime de teres leccionado gratuitamente os filhos dos ferroviários, em Campolide. Nem tão pouco esqueceram o crime maior do teu valioso trabalho na Liga Esperantista Nacional, o que não só levou à tua primeira prisão,como ao encerramento da Liga. E nunca perdoaram, nem compreenderam - como poderiam compreender ?- que te tivesses deixado prender na tipografia clandestina do Avante!, para permitir a fuga de dois camaradas. Não perdoaram igualmente a tua firmeza nos interrogatórios.

Não morrem os companheiros de luta, como tu. No 25 de Abril estiveste inspirando os valorosos militares e acompanhando o Povo que das prisões fez sair os presos políticos por cuja libertação tanto te bateste. No Maio de 74, estiveste connosco de mãos dadas. O sangue derramado noutros Maios sangrentos floria nas tuas (nossas mãos) em cada pétala de cravos rubros. Ao nosso lado estiveste, Maria, no 28 de Setembro, quando a reacção envolvida em manto de hipocrisia, esperava estrangular a vontade nova, que o sacrifício de Homens e Mulheres como tu, fez surgir no Povo e que não permitiu a boicotagem económica nem a chantagem política Passou o tempo. São 27 anos de Democracia, que não conheceste. Pelos teus ideais a luta continua. Quantas vezes, em manifestações de regozijo ou de protesto a tua imagem forte me surge como bandeira, parafraseando-te: Sou feliz porque vejo o Povo na rua. De facto, não morrem os companheiros de luta, nem a luta com eles morre. Ambos renascem em cada comunista e em cada democrata consequente.

Para terminar esta carta, singela homenagem, de ti me despeço Maria, com a recordação do teu maternal sorriso.

«Avante!» Nº 1458 - 8.Novembro.2001