Os amigos
Ao longo dos últimos anos, com o debate político e mediático sobre a guerra no Leste da Europa reduzido a dicotomias simplistas – e certamente muito lucrativas para alguns –, foi-se consolidando uma errada ligação entre a instigação do conflito, o reforço da confrontação, a corrida às armas e o chamado rearmamento europeu com a alegada solidariedade à Ucrânia e ao seu povo. Por mais absurdo que possa parecer (e parecerá a quem, no futuro, se dedicar a analisar as narrativas contemporâneas), neste mundo ao contrário em que vivemos, os que defendem o prolongamento e a escalada da guerra são «amigos da Ucrânia».
Por esta lógica arrevesada, os que pilharam a economia ucraniana desde a primeira metade da década de 90 do século XX, impondo privatizações e encerramentos, despedimentos e choques neoliberais – que levaram à redução da população do país, entre 1991 e 2019, em cerca de 10 milhões de pessoas – são, afinal, os «amigos da Ucrânia». Os mesmos, aliás, que levaram o país a abandonar a sua neutralidade e que desde 2008 lhe acenam com a adesão à NATO.
Foram também estes «amigos da Ucrânia» que, em 2014, promoveram um golpe de Estado que depôs um presidente democraticamente eleito e colocou no poder sectores fascistas e xenófobos, herdeiros dos colaboracionistas com os nazis na Segunda Guerra Mundial, que de imediato atacaram as forças democráticas e a numerosa minoria de língua e cultura russas, pondo em causa o carácter multinacional e multicultural do país e lançando-o na guerra civil e na provocação à Federação Russa. Uma dessas «amigas» era a então Secretária de Estado norte-americana Victoria Nuland, que foi apanhada a escolher ministros para o governo golpista; outro era aquele que, à data, assumia a presidência da Comissão Europeia, ninguém menos do que o nosso bem conhecido José Manuel Durão Barroso, o mesmo que veio, há meses, admitir a hipótese de enviar para a guerra os «nossos filhos» e os «nossos netos».
Foram também os «amigos da Ucrânia» a fazer dos Acordos de Minsk (foi Angela Merkel a reconhecê-lo) não uma forma de pacificar o país e a região, como seria o seu propósito, mas de «ganhar tempo» para armar a Ucrânia para uma futura – e desejada – guerra. E quando a Rússia enviou aos EUA e à NATO, em finais de 2021, propostas de negociação sobre desanuviamento e garantias de segurança, que fizeram os «amigos da Ucrânia»? Ignoraram-nas. E não foram eles a inviabilizar, já em 2022, poucos meses após a entrada das tropas russas, qualquer possibilidade de negociação de paz, prometendo às autoridades ucranianas meios que lhes permitissem «ganhar a guerra»?
São estes «amigos» que continuam determinados em que a guerra prossiga, mesmo que até ao último ucraniano. Estranha amizade, esta...