A história, o asno e o cavalo

Jorge Cordeiro

Munique é assim. Nunca se sabe o que dali sai. Em 1938 foi o que se viu com as principais potências capitalistas europeias a dar a mão à Alemanha nazi. Agora, quando a turba beligerante da União Europeia ali estava para dar continuidade à guerra e ver como cortar em direitos e serviços públicos para dedicar à compra de armas, aparece alguém a acusar a «Europa» de perda dos «seus valores fundamentais».

O caos está lançado. Entre a estupefacção e a barafunda, é ver comentadores analistas, opinadores de ciência política e relações internacionais, jornalistas comentadores jorrados para o espaço mediático a tentar, entre o indignado e a perda de norte, reagrupar argumentos e manter a compostura. O que vale é que por maior que seja a negritude há sempre uma luzinha pronta a alumiar. Teresa de Sousa, cronista e publicista da cartilha neoliberal e bélica europeísta, aí está a lembrar Munique e o que pode representar em termos de repetição da história. Não se veja na afirmação sintoma de recaída ideológica, um impulso ditado pela idade de regresso ao seu fogoso passado maoísta. Ainda que não se deva descortinar ali mais do que um modo de dizer, uma frase pronta a usar longe do sentido amplo que Marx lhe atribuiu na obra Dezoito de Brumário de que «a história se repete a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa», não se pode negar que ela tem algo de premonitório.

Manda a prudência que se recusem precipitadas absolutizações, conclusões deterministas ou pior ainda, erradas conclusões sobre a aparente confusão reinante. Desde logo, porque as lições de moral dos enviados norte-americanos são como o «ovo da serpente», esse mal em gestação que não sendo novo ganha novas caras do outro lado do Atlântico. Mas também porque admitindo que a «perda de valores fundamentais» identificada por Vance se dirigia não à «Europa» – essa Europa Continente, com a sua história de séculos – mas sim a esse espaço político e geográfico que é a UE, que a plateia de horrorizados assistentes corporiza do que de pior representa, a afirmação é um manifesto exagero. Os verdadeiros valores da UE são os que se conhecem do seu projecto neoliberal, federalista e militarista, ao serviço da oligarquia que serve, à custa dos direitos dos povos e da soberania dos Estados.

É possível que nos meandros de Bruxelas haja quem já admita encontrar inspiração no dizer popular que levou Gil Vicente a escrever Farsa de Inês Pereira, que «mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube».



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