O percurso do sistema
Israel quer uma nova Gaza na Cisjordânia
Trump não é um acidente de percurso, é o percurso do sistema. À medida que o tempo vai passando, esta afirmação, feita por nós há meses atrás, antes da sua eleição como Presidente dos EUA, é cada vez mais verdadeira e comprovada pela acção da nova administração norte-americana e da acção e reacção dos seus aliados e/ou súbditos.
Os exemplos do que estamos a dizer são muitos. Podíamos falar por exemplo da «guerra comercial», em que até agora as únicas tarifas que foram verdadeiramente concretizadas foram as que visam a China, e cujo tratamento mediático nos quer fazer esquecer que Biden foi profícuo em sanções económicas, bloqueios e tarifas. Podíamos falar sobre a Ucrânia, onde é cada vez mais claro que a principal preocupação de Trump parece ser reconfigurar o conflito para dali retirar maiores vantagens e onde é evidente que os EUA continuam a querer impor ali interesses económicos e estratégicos contra a Federação Russa, vista como uma peça do conflito estratégico principal contra a China. China aliás que continua a ser, e agora de forma mais visível, o alvo principal das ameaças comerciais, estratégicas e militares dos EUA, na linha que Biden já vinha desenvolvendo. Podíamos ainda falar da NATO e da União Europeia onde tentativas de higienização retórica de distanciamento face a Trump se saldam num progressivo abanar de cauda, num «vamos esperar para ver» no plano das relações comerciais, e numa chantagem ideológica para forçar o belicismo, propagar a propaganda de guerra e avançar nos gastos militares – exactamente como Biden queria, e Trump também quer.
Podíamos falar disto tudo, mas queremos falar de uma questão que adquire cada vez mais centralidade na síntese do que está a acontecer nas relações internacionais. Biden já tinha anunciado a tese da «ordem mundial com regras», ou seja o primado dos interesses dos EUA e seus aliados sobre o Direito Internacional. Trump está a concretizar esse princípio. É isso que está por detrás do seu tenebroso plano de expulsão da população palestiniana da Faixa de Gaza.
Levantam-se vozes, várias delas hipócritas e/ou redondas, contra esse plano de limpeza étnica que nos transporta para a história do nazi-fascismo. Mas alguns desses foram os que apoiaram, foram e são coniventes com o genocídio em curso e com a matança de mais de 60.000 pessoas naquele território. São os mesmos que conviveram bem, durante 1 ano e 3 meses, com o arrasar daquele território, e com o impedimento de qualquer ajuda humanitária. Esses, que agora enchem a boca com a «solução de dois estados» (como se ela não estivesse a ser posta em causa), são os mesmos que assobiam para o lado com a agressão na Cisjordânia, onde desde 19 de Janeiro Israel parece querer provocar uma nova Gaza, e são os mesmos que se recusam a reconhecer de imediato o povo da Palestina, como acontece com o Governo português que depois dessa rejeição partiu de imediato para Israel para o beija-mão a criminosos de guerra acusados de genocídio, exactamente no momento em que esses anunciam os planos da limpeza étnica e quando multiplicam crimes em Jenin ou Tulkarem.
Esperamos sinceramente estar enganados, mas, ao momento que escrevemos, tudo indica que o acordo de cessar-fogo não chegará à segunda fase. Poder-se-á dizer que o plano de Trump acelerou esse desfecho. Pode ser verdade Contudo, é preciso dizer a verdade: este não seria o cenário se se tivesse impedido em tempo o genocídio em Gaza, agora utilizado para justificar a limpeza étnica. É este o tenebroso percurso do sistema.