Pode alguém ser quem não é?

Gustavo Carneiro

Perdoe-me o poeta ter-lhe tomado de empréstimo um verso para me referir a um assunto acerca do qual não conheço a sua opinião. Porém, lá dizia O Carteiro de Pablo Neruda, a poesia pertence aos que dela precisam e o verso que dá título a esta crónica, extraído da canção homónima de Sérgio Godinho, encaixa na perfeição no que se pretende aqui salientar.

Falamos do PS e da sua renovada aposta em apresentar-se como oposição de esquerda ao Governo PSD/CDS e barreira decisiva para travar o avanço da extrema-direita. O ímpeto é tal que até sugere liderar uma frente de esquerda em Lisboa contra Carlos Moedas. Porém, e no meio de tanto entusiasmo, quase passava despercebido o facto de Moedas e a sua equipa governarem os destinos da capital com a cumplicidade do PS, que deixou passar sucessivos orçamentos (na verdade não tão diferentes dos seus, quando liderava a autarquia). E foi precisamente isso que este PS tão à esquerda fez, também, com o Orçamento do Estado: muitas críticas, discursos inflamados e… uma abstenção que não só o viabilizou como permitiu a IL e Chega – a tal extrema-direita! – votarem contra e continuarem a fingir que é muito o que os separa do actual Governo.

Este desacerto entre palavras e actos voltou a estar presente, há dias, no debate sobre as alterações à Lei dos Solos, que a generalidade dos especialistas concorda que abrirão caminho a uma ainda maior especulação imobiliária. As inquietações manifestadas pelo PS redundaram numa abstenção, perante a abertura (devidamente vaga) do Governo para negociar eventuais alterações

Neste constante balancear entre o tal «radicalismo» (retórico, entenda-se) quando está na oposição e a «moderação» sempre que governa, o PS lembrou-se agora de defender a criação do Estado da Palestina – que antes, repetidamente, rejeitou – e o alargamento do prazo para a realização da IVG a pedido da mulher das 10 para as 12 semanas. Boas iniciativas, sem dúvida, mas um péssimo sentido de oportunidade: meses antes e, no Governo e com maioria absoluta, teria garantido a sua aprovação. Isto, claro, se fosse essa a sua intenção…

Não se pretende, com estes exemplos (e tantos outros que poderiam ser dados), criticar este ou aquele dirigente, eleito ou candidato do PS. É uma questão de natureza: foi o PS do «socialismo democrático» que alinhou com a direita e o imperialismo para travar o avanço da Revolução, deu os primeiros golpes na Reforma Agrária, nas nacionalizações e na legislação laboral, recolocou o País à mercê dos monopólios e tudo fez para o manter vergado às imposições da CEE/UE e da NATO – opções de que se orgulha e que mantém.

Não é por ali que passam as esperanças de soberania, progresso e justiça social. Essa é tarefa que só a luta do povo, com os comunistas, poderá concretizar.

 



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