Comunicação e redes no tabuleiro ideológico

Jorge Cordeiro (Membro do Secretariado e da Comissão Política)

Dis­tin­guir entre o real e o falso ganha con­tornos de exi­gência

As ques­tões da co­mu­ni­cação em sen­tido lato, em par­ti­cular as das cha­madas “redes”, co­brem uma te­má­tica trans­versal, abran­gente e re­la­ci­o­nável: po­lí­tica, eco­nó­mica, so­cial, com­por­ta­mental, ide­o­ló­gica.

Sobre elas, e à sua sombra, de­sen­volvem-se ele­mentos para lá do que em si re­pre­sentam, me­dram te­o­ri­za­ções di­versas e brotam novas fontes de pro­dução ide­o­ló­gica ali­nhadas com o poder e pen­sa­mento do­mi­nantes.

Não se ne­gará o papel que ocupam na dis­se­mi­nação de in­for­mação, na ve­lo­ci­dade que a di­fundem, no acesso a ela com o gesto de um dedo. Nessa apa­rente de­mo­cra­ti­zação da in­for­mação, questão dis­tinta do co­nhe­ci­mento, há não poucos ele­mentos de per­ver­si­dade e des­men­tido do que se quer dar como ad­qui­rido. As exi­gên­cias de um co­nhe­ci­mento só­lido e es­cla­re­cido exige ou­tros pa­ta­mares de abor­dagem, não se cir­cuns­creve ao que no ime­diato a su­per­fi­ci­a­li­dade de uma in­for­mação des­perta. Cons­tatar não sig­ni­fica com­pre­ender ou como dizia um fi­ló­sofo ilu­mi­nista, não se trata de fazer ler mas de fazer pensar.

É ine­gável que a mas­si­fi­cação e ra­pidez da di­fusão da in­for­mação tem van­ta­gens. Tornou o mundo mais pró­ximo. Per­mite tomar ins­tan­ta­ne­a­mente co­nhe­ci­mento de acon­te­ci­mentos, ter acesso a uma in­for­mação em cima de um facto, fazer chegar de forma rá­pida e mas­si­fi­cada in­for­mação que por outro meio não era pos­sível. Mas tem per­ver­si­dades. O tempo po­lí­tico, nunca é o tempo da in­for­mação ins­tan­tânea. Aquele exige re­flexão e ma­tu­ração ao con­trário desta. E o choque entre estas duas di­men­sões fa­vo­rece as forças que apostam na emoção e não na razão.

A fron­teira entre in­for­mação e ma­ni­pu­lação é ténue. Dis­tin­guir entre o real e o falso ganha con­tornos de exi­gência. Ou seja, a margem do es­cru­tínio é fraco. E isso in­quina o de­bate na rede, num pro­cesso de co­mu­ni­cação onde, como al­guém já disse, o de­bate da re­a­li­dade passa para o da per­cepção.

Nas te­cidas te­o­ri­za­ções que à bo­leia desta re­a­li­dade se la­boram, aí estão as que pre­tendem apre­sentar o fun­ci­o­na­mento em rede vir­tual como o novo pa­ra­digma de or­ga­ni­zação po­lí­tica, eco­nó­mica e so­cial, onde se se­pul­ta­riam as con­cep­ções mar­xistas e ob­jec­tivas sobre Es­tado e poder, trans­fe­rindo da es­fera con­creta e prá­tica da acção co­lec­tiva o papel de trans­for­mação. As ex­pres­sões que em modo de con­tra­facção por aí abundam se­gundo as quais “o poder já não está no Es­tado, de­fende-se em redes”, su­por­tada na tese de um Es­tado “em rede” ima­gi­nado como sis­tema po­lí­tico des­ti­tuído de poder, in­flu­en­ciado e de­ter­mi­nado pelas redes, que con­du­zi­riam a subs­ti­tuir ca­nais de re­pre­sen­tação po­lí­tica, a sus­tentar a cons­trução da al­ter­na­tiva nas redes so­cais e se­diar nessas ex­pres­sões os em­briões de novas so­ci­e­dades são exem­plos do que por aí se se­meia.

Em si mesmas estas fer­ra­mentas en­cerram pe­rigos e po­ten­ci­a­li­dades. Um poder de in­flu­en­ciar com­por­ta­mentos, ma­ni­pular sen­ti­mentos e in­duzir op­ções po­lí­ticas e vi­sões do mundo à es­cala de massas. Mas a ex­pe­ri­ência também mostra que pode ser factor com­ple­mentar de mo­bi­li­zação se li­gado ao mais exi­gente tra­balho or­ga­ni­za­ci­onal e de con­tacto di­recto.

Em si mesmo, as redes são o que o poder que as de­ter­mina delas faz. É isso que im­porta ter pre­sente. Ainda que apre­sen­tadas como mero e adi­ci­onal me­ca­nismo de co­mu­ni­cação as redes tor­naram-se de forma cres­cente num ins­tru­mento de do­mi­nação, sempre sob a vi­gi­lância do al­go­ritmo cuja pro­dução e con­trolo nin­guém tem acesso, ex­cepto os poucos que o pro­duzem e de­ter­minam. As redes não são por si só, en­quanto ins­tru­mento tec­no­ló­gico, res­pon­sável pelo seu poder de ma­ni­pu­lação. Elas são um ins­tru­mento ori­en­tado pelo poder ca­pi­ta­lista para as moldar e co­locar ao ser­viço da sua do­mi­nação e opressão. Nem mais nem menos de ou­tros ins­tru­mentos que em ou­tros mo­mentos foram usados ainda que sem a so­fis­ti­cação, al­cance e poder di­fusor deste.

A uti­li­zação de so­fis­ti­cadas fer­ra­mentas de software de­sen­volvem uma enorme ca­pa­ci­dade de in­dução de gostos e com­por­ta­mentos não apenas com ob­jec­tivos mer­cantis, mas de ma­ni­pu­lação po­lí­tica e ide­o­ló­gica.

Há quem apre­sente as redes como su­ces­sora da ma­ni­pu­lação po­lí­tica feita através da im­prensa e da te­le­visão. Mas isso não sig­ni­fica re­tirar da es­fera dos ins­tru­mentos de do­mi­nação ide­o­ló­gica a co­mu­ni­cação so­cial dita tra­di­ci­onal, ela pró­pria em evo­lução nos seus for­matos. Em larga me­dida esta e as redes com­ple­mentam-se. Na ver­dade, estas tendem a tornar-se um ele­mento in­te­grado no sis­tema me­diá­tico. As redes com toda a sua pa­ra­fer­nália não conduz a que se en­dossem para ela e para os seus uti­li­za­dores as causas do mal do mundo.

Com o do­mínio cen­tra­li­zado destes ins­tru­mentos nas mãos de um res­trito oli­go­pólio de gi­gantes di­gi­tais a sua uti­li­zação está di­ri­gida para di­fi­cultar e con­di­ci­onar o sur­gi­mento da nova so­ci­e­dade. Mas di­fi­cul­dade não quer dizer im­pos­si­bi­li­dade. O con­di­ci­o­na­mento ide­o­ló­gico e a ma­ni­pu­lação re­for­çadas neste ins­tru­mento que, com a ci­ência dos dados é capaz de mo­di­ficar com­por­ta­mentos hu­manos e os moldar, pode não chegar para conter em mar­gens se­guras o seu do­mínio e su­perar as con­tra­di­ções que brotam do seu sis­tema ex­plo­rador. Não basta o con­trolo ide­o­ló­gico re­for­çado, este tem também os seus li­mites que se devem ex­plorar e en­con­trar as formas de o en­fra­quecer. A re­a­li­dade vi­vida e a luta com­bi­nadas podem en­fra­quecer as mar­gens opres­soras cons­truidas por esse con­trolo ide­o­ló­gico.

 



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