- Nº 2653 (2024/10/3)

Comunicação e redes no tabuleiro ideológico

Opinião

As questões da comunicação em sentido lato, em particular as das chamadas “redes”, cobrem uma temática transversal, abrangente e relacionável: política, económica, social, comportamental, ideológica.

Sobre elas, e à sua sombra, desenvolvem-se elementos para lá do que em si representam, medram teorizações diversas e brotam novas fontes de produção ideológica alinhadas com o poder e pensamento dominantes.

Não se negará o papel que ocupam na disseminação de informação, na velocidade que a difundem, no acesso a ela com o gesto de um dedo. Nessa aparente democratização da informação, questão distinta do conhecimento, há não poucos elementos de perversidade e desmentido do que se quer dar como adquirido. As exigências de um conhecimento sólido e esclarecido exige outros patamares de abordagem, não se circunscreve ao que no imediato a superficialidade de uma informação desperta. Constatar não significa compreender ou como dizia um filósofo iluminista, não se trata de fazer ler mas de fazer pensar.

É inegável que a massificação e rapidez da difusão da informação tem vantagens. Tornou o mundo mais próximo. Permite tomar instantaneamente conhecimento de acontecimentos, ter acesso a uma informação em cima de um facto, fazer chegar de forma rápida e massificada informação que por outro meio não era possível. Mas tem perversidades. O tempo político, nunca é o tempo da informação instantânea. Aquele exige reflexão e maturação ao contrário desta. E o choque entre estas duas dimensões favorece as forças que apostam na emoção e não na razão.

A fronteira entre informação e manipulação é ténue. Distinguir entre o real e o falso ganha contornos de exigência. Ou seja, a margem do escrutínio é fraco. E isso inquina o debate na rede, num processo de comunicação onde, como alguém já disse, o debate da realidade passa para o da percepção.

Nas tecidas teorizações que à boleia desta realidade se laboram, aí estão as que pretendem apresentar o funcionamento em rede virtual como o novo paradigma de organização política, económica e social, onde se sepultariam as concepções marxistas e objectivas sobre Estado e poder, transferindo da esfera concreta e prática da acção colectiva o papel de transformação. As expressões que em modo de contrafacção por aí abundam segundo as quais “o poder já não está no Estado, defende-se em redes”, suportada na tese de um Estado “em rede” imaginado como sistema político destituído de poder, influenciado e determinado pelas redes, que conduziriam a substituir canais de representação política, a sustentar a construção da alternativa nas redes socais e sediar nessas expressões os embriões de novas sociedades são exemplos do que por aí se semeia.

Em si mesmas estas ferramentas encerram perigos e potencialidades. Um poder de influenciar comportamentos, manipular sentimentos e induzir opções políticas e visões do mundo à escala de massas. Mas a experiência também mostra que pode ser factor complementar de mobilização se ligado ao mais exigente trabalho organizacional e de contacto directo.

Em si mesmo, as redes são o que o poder que as determina delas faz. É isso que importa ter presente. Ainda que apresentadas como mero e adicional mecanismo de comunicação as redes tornaram-se de forma crescente num instrumento de dominação, sempre sob a vigilância do algoritmo cuja produção e controlo ninguém tem acesso, excepto os poucos que o produzem e determinam. As redes não são por si só, enquanto instrumento tecnológico, responsável pelo seu poder de manipulação. Elas são um instrumento orientado pelo poder capitalista para as moldar e colocar ao serviço da sua dominação e opressão. Nem mais nem menos de outros instrumentos que em outros momentos foram usados ainda que sem a sofisticação, alcance e poder difusor deste.

A utilização de sofisticadas ferramentas de software desenvolvem uma enorme capacidade de indução de gostos e comportamentos não apenas com objectivos mercantis, mas de manipulação política e ideológica.

Há quem apresente as redes como sucessora da manipulação política feita através da imprensa e da televisão. Mas isso não significa retirar da esfera dos instrumentos de dominação ideológica a comunicação social dita tradicional, ela própria em evolução nos seus formatos. Em larga medida esta e as redes complementam-se. Na verdade, estas tendem a tornar-se um elemento integrado no sistema mediático. As redes com toda a sua parafernália não conduz a que se endossem para ela e para os seus utilizadores as causas do mal do mundo.

Com o domínio centralizado destes instrumentos nas mãos de um restrito oligopólio de gigantes digitais a sua utilização está dirigida para dificultar e condicionar o surgimento da nova sociedade. Mas dificuldade não quer dizer impossibilidade. O condicionamento ideológico e a manipulação reforçadas neste instrumento que, com a ciência dos dados é capaz de modificar comportamentos humanos e os moldar, pode não chegar para conter em margens seguras o seu domínio e superar as contradições que brotam do seu sistema explorador. Não basta o controlo ideológico reforçado, este tem também os seus limites que se devem explorar e encontrar as formas de o enfraquecer. A realidade vivida e a luta combinadas podem enfraquecer as margens opressoras construidas por esse controlo ideológico.

 

Jorge Cordeiro