O impensável

Gustavo Carneiro

Há muito tempo que não se falava tanto de armas nucleares. No discurso político-mediático, o assunto surge com frequência e tantas vezes num tom que, de tão ligeiro, chega a ser assustador: realça-se o poderio dos arsenais, exulta-se com as novas tecnologias, apela-se à escalada e a «mais investimento», alude-se até à possibilidade de poderem ser novamente utilizadas. Assim se banaliza o que deveria ser impensável…

Faz por estes dias 79 anos que as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasáqui foram arrasadas por dois engenhos nucleares norte-americanos e era útil que acerca disto se dissesse mais do que o habitual cliché das bombas que puseram fim à guerra, o que para além de ser uma flagrante falsidade histórica visa absolver os culpados daquele que é, inquestionavelmente, um dos maiores crimes contra a Humanidade alguma vez cometido.

Algum do generoso tempo de antena gasto a promover a escalada era seguramente mais bem empregue a recordar que a 6 e 9 de Agosto de 1945, no exacto momento das explosões, morreram centenas de milhares de pessoas e que muitas outras sucumbiram às queimaduras e à radiação nas horas, dias, semanas e meses seguintes. Ou a lembrar que os seus efeitos perduram até hoje nas anormalmente elevadas taxas de doenças oncológicas e malformações.

Em vez de se dar voz a falcões da guerra ou aos seus porta-vozes de ocasião, era melhor que se recuperasse as memórias dos hibakushas, os sobreviventes de Hiroshima e Nagasáqui: «não apenas pessoas, mas várias formas de vida – flores, árvores, animais – foram todas varridas»; «o sol parecia ter desaparecido por detrás das pesadas nuvens cinzentas que cobriam o céu»; «uma semana depois (…) o fogo ainda queimava»; «a amiga com quem eu estava (…) morreu. Não conseguimos encontrá-la». Estes e outros testemunhos são duros de ler, mas fáceis de encontrar (https://hibakushastories.org).

Para além dos «especialistas» forma(ta)dos em política internacional e geo-estratégia, era bom ouvir também o que têm a dizer, sobre os riscos de uma guerra nuclear, os cientistas – que, como disse Einstein, desencadearam essa «força monstruosa» e têm agora uma «responsabilidade extraordinariamente grande na luta pela vida e a morte». A Federação dos Cientistas Americanos (fas.org), por exemplo, refere-se às tempestades de fogo provocadas pelas explosões nucleares – com temperaturas de milhares de graus e ventos superiores a 1000 km/h –, aos efeitos prolongados no tempo devido à radiação, às alterações climáticas catastróficas associadas ao Inverno Nuclear, que ameaçariam a vida na Terra.

Que se fale de armas nucleares, sim, mas para criar na consciência colectiva a urgência da sua eliminação. Para que o impensável nunca ocorra.

 



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