A orelha sangrenta do imperialismo

António Santos

Enquanto a História não se encarrega de esclarecer os estranhos contornos da tentativa de assassinato de Donald Trump, assumamos, sem qualquer prejuízo de análise, a versão oficial dos factos.

É sempre avisado perguntarmo-nos, como os antigos, quem beneficia, mas nem sempre quem beneficia indirectamente é directamente quem faz. A menos que, até Novembro, a imagem de um Trump ensanguentado, alvejado a milímetros do cérebro, a erguer o punho para a multidão e a gritar «Lutem!» seja superada por uma surpresa ainda maior, como a morte de Biden ou um escândalo insuperável, tudo indica que Trump vencerá as eleições presidenciais. Trump foi certamente um dos pirómanos de violência política que (aparentemente) quase lhe ceifou a vida e (provavelmente) lhe garantiu a presidência, mas não foi ele que começou o incêndio.

Encostado contra a parede de uma derrota quase inevitável em Novembro e sob o pretexto de «baixar a fervura», Biden veio a terreiro ensaiar uma conciliação com Trump, garantindo que «não há lugar na América para este tipo de violência» e até que «não é isto que nós somos», mas é extactamente isto que os EUA são. A violência é tão estado-unidense «como a tarte de maçã»: só no ano passado morreram neste país 44 000 pessoas em tiroteios, 604 dos quais em massa; as guerras engendradas pelos EUA mataram milhões de pessoas nos últimos 30 anos e toda a sua história assenta no colonialismo genocida, no esclavagismo mais brutal e no racismo estrutural. No mesmo dia em que a orelha de Trump ficou arranhada, Israel matou, com o apoio dos EUA, 120 civis na Palestina. Independentemente de eventuais conspirações, a orelha de Trump é definitivamente a consequência do recrudescimento das cisões entre sectores concorrentes do grande capital com diferentes agendas para o imperialismo. Essas cisões repercutem-se por toda a sociedade em milhares de fenómenos desenfreados e imprevisíveis que, numa perspectiva histórica mais dilatada, são a manifestação social e doméstica da decadência do imperialismo.

Nesta esteira, na segunda-feira, um Trump apoteótico, «salvo por Deus» e com um penso na orelha, e aproveitou a Convenção Nacional Republicana, em Milwaukee, no Wisconsin, para se confirmar como mais do que o candidato do partido: afirmou-se como o ditador bonapartista que jura estar acima das classes sociais e da política partidária. Trump escolheu para vice-presidente o senador do Ohio J. D. Vance, um demagogo proveniente da classe trabalhadora branca que após se ter feito milionário na especulação, encontrou nicho como guru de pobres «sem visão». «A pobreza não é criada por governos, nem empresas nem mais ninguém, a não ser os próprios pobres», escreveu. Se dúvidas restassem acerca do propósito de Trump se assumir como grande defensor «populista» dos trabalhadores desiludidos com o PD, note-se que, numa das intervenções mais aguardadas da noite, Sean O’Brien, presidente da confederação sindical Teamsters, com 1,3 milhões de sócios, usou o palco republicano para transmitir a Trump as justas reivindicações da classe trabalhadora. O’Brien recusou-se, pela primeira vez na história dos Teamsters, a apoiar o candidato do Partido Democrata e elogiou Trump, «um candidato que não tem medo de ouvir vozes novas, altas e às vezes críticas», declarou.

Subitamente, calaram-se as vozes que reclamavam que Biden desistisse da corrida. De um dia para o outro, um novo Trump, piedoso e ameno – obra da bala na orelha, garante – pede a união nacional para salvar os EUA da segunda guerra civil. Entretanto, cai o processo que o incriminava no caso dos documentos classificados. Nos EUA, o fascismo não será vencido nas urnas: ele é uma força social que se expressará com qualquer cara, forma, sigla, símbolo ou método. Só a independência da classe trabalhadora o poderá evitar.

 



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