A franqueza é uma virtude

Jorge Cordeiro

Há mo­mentos assim. Meses de ab­ne­gada cons­trução de apa­rên­cias, la­bo­ri­osas cons­tru­ções se­mân­ticas, es­for­çadas co­gi­ta­ções para dar por boa e ad­qui­rida uma certa nar­ra­tiva e, zás!, num ápice abre-se a boca e é o de­sastre, o es­bo­roar desse labor. Foi assim com Diana Soller, es­for­çada pro­pa­gan­dista do mi­li­ta­rismo dos EUA e da NATO, di­li­gente re­pro­du­tora da­queles lu­gares co­muns eri­gidos a ver­dades uni­ver­sais, não por o serem mas por tantas vezes re­pe­tidas pas­sarem a sê-lo, sem o ser.

Toda aquela con­versa sobre a su­pre­macia dos va­lores do Oci­dente, as vir­tude de­mo­crá­ticas atlan­tista face às «au­to­cra­cias» ori­en­tais, as vir­tu­osas di­men­sões de sis­temas elei­to­rais do mundo ca­pi­ta­lista capaz de re­pro­duzir o que é mi­no­ri­tário em mai­oria – ins­pi­rado na di­nâ­mica re­pro­du­tora do ca­pital – se viu num ápice des­nu­dada. A dis­cussão sobre a alhada em que as elei­ções norte-ame­ri­canas estão en­re­dadas e o que fazer com Biden que não dando si­nais de grande dis­cer­ni­mento, se al­guma a vez teve, in­quieta os de­mo­cratas a ponto de o subs­ti­tuir na cor­rida elei­toral, in­tro­duzia um di­lema que qual­quer comum dos mor­tais jul­garia questão maior.

En­gane-se o leitor. Com aquela fran­queza a que se deve fazer jus, Diana Soller deu à luz me­diá­tica a so­lução capaz de ilu­minar a ne­gri­tude do per­curso da cor­rida elei­toral. Disse ela «se os da­dores não fi­nan­ci­arem a cam­panha de Joe Biden, será muito di­fícil que não venha a ser subs­ti­tuído». Não se ques­tiona a as­ser­ti­vi­dade da co­men­ta­dora ainda que possa sur­pre­ender o à-von­tade da afir­mação só ex­pli­cável pela ge­nuína con­cepção de «va­lores» ali ex­posta. O que im­porta re­gistar é o que lhe está sub­ja­cente: o des­men­tido ca­te­gó­rico da ele­vação de­mo­crá­tica da­quele farol oci­dental, da su­pe­ri­o­ri­dade ética e li­sura elei­toral ba­seada no su­borno fi­nan­ceiro, da ge­nuína in­de­pen­dência po­lí­tica que dali re­sul­tará entre dador e re­ceptor, da no­breza de pro­ce­di­mentos ali re­ve­lada se com­pa­rada com esses actos elei­to­rais do Sul global tão ba­nais que dis­pensam con­ven­ções, compra de votos, re­ve­la­ções de es­cân­dalos, ex­po­sição de vidas pes­soais.

E so­bre­tudo, a ga­rantia de que se ganha sempre com 100% se se atender que entre burros e ele­fantes, ou seja de­mo­cratas e re­pu­bli­canos, em termos de ob­jec­tivos é de par­tido único que se trata.

 



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