Não podemos ignorar
«Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» – este verso de Sophia de Mello Breyner Andersen, que Francisco Fanhais musicou em 1970, foi um grito contra as injustiças, a guerra e a repressão que amordaçavam Portugal em pleno período fascista. Um grito que, longe de estar datado, se projecta na actualidade face às indisfarçáveis ameaças que pendem sobre os valores de Abril.
Não há como ignorar o clima político e comunicacional profundamente reaccionário que vai medrando. A intensificação da guerra na Ucrânia, na esteira do que já acontecera com a pandemia, veio degradar ainda mais esse ambiente.
A agenda mediática, potenciada pelas «redes sociais», é cada vez mais contaminada pela promoção de concepções e valores antidemocráticos. Proíbe-se livros e escritores, cancela-se espectáculos, boicota-se competições desportivas, estimula-se a delação, reescreve-se a história à luz de interesses obscuros, o anticomunismo é elevado à condição de virtude, o ódio é naturalizado, o pensamento único vai-se instalando e quem ouse enfrentá-lo expõe-se à ameaça, à coacção, à segregação. Na semana passada, o Chega chegou mesmo a promover um «cerco» à sede do PS, como antes vários sectores reaccionários já haviam tentado contra outras forças políticas e contra iniciativas políticas e culturais. Ora, a Constituição da República garante, entre outras liberdades fundamentais, o direito de participação política e de constituição e organização de partidos políticos, liberdades que não podem ser invocadas para fazer o seu contrário.
Bem pode alguma comunicação social derramar lágrimas de crocodilo sobre o crescimento da extrema-direita quando, na verdade, sem a deliberada promoção que fazem, dificilmente essas forças atingiriam os seus propósitos.
O facto é que nada disto ocorre por acaso. Há uma estratégia de domínio do grande capital. Há uma tentativa de aproveitamento das dificuldades e retrocessos impostos pela política de direita para a levar ainda mais longe. Há o objectivo de fazer recuar direitos, liberdades e garantias conquistadas a pulso e agravar a exploração. Há uma intenção de afastar, limitar e oprimir todos os que ousem resistir e enfrentar. Não, não só não podemos ignorar como temos o dever de reagir e combater tais propósitos.