Com toda a propriedade

João Frazão

O anúncio de uma remota possibilidade de arrendamento compulsivo de habitações devolutas, não obstante o Governo ter vindo já esclarecer que o destino mais que certo para tão sonante medida não será muito diferente de todos os outros anúncios em matéria de política de habitação, ou seja, não passará do projecto, abriu uma onda de histeria reaccionária em defesa da sacrossanta propriedade privada que merece dois comentários.

O primeiro para sinalizar como o sofrimento, a angústia, a insegurança de milhares de homens e mulheres que não têm uma moradia digna, a possibilidade de tantas famílias terem que entregar as suas casas por não conseguirem pagar as prestações à banca ou a incerteza de saberem se amanhã terão um tecto para os seus filhos, é completamente indiferente para comentadores encartados, políticos de diversos matizes e peritos em generalidades diversas, incluindo a habitação, ao serviço do grande capital, perante a possibilidade de estar vagamente em causa o sagrado direito à posse e a iniciativa privadas.

Uma indiferença que é mesmo repugnante quando ouvimos alguém dizer que os proprietários têm direito a ter casas desocupadas, se assim lhes apetecer, quando há tantas pessoas a viver em condições indignas.

Um segundo comentário para registar que tanto alarido – com a burguesia e os seus acólitos a não admitir, sequer, a perda de pequenas parcelas dos instrumentos de exploração e concentração de riqueza que têm à sua disposição, o que não é mais que o capital a mostrar-se em todo o seu esplendor e em toda a sua desumanidade – revela bem que o capitalismo não apenas não é reformável, não havendo programa social-democrata que lhe elimine as contradições, como reagirá sempre violentamente, mesmo perante medidas tão pífias como esta, quando sentir que possa estar em causa o, como agora se diz, seu «modo de vida», assente no lucro e na especulação.

E que tal constatação confirma a exigência de o superar. E, com toda a propriedade se pode dizer, que não será com boas palavras, que para isso o capital não tem ouvidos.




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