Lola
«Um preto de cabeleira loura ou um branco de carapinha não é natural, o que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu.» Criado nos anos 80 do século passado, o anúncio que imortalizou o Restaurador Olex data de um tempo em que o «politicamente correcto» ainda não tinha sido inventado, não havia redes sociais e era escasso o perigo de alguém questionar mensagens hilariantes mas não inócuas.
Produto da Fábrica Couto, que nos anos 70 popularizou a Pasta «que anda na boca de toda a gente» com um anúncio mostrando um artista moçambicano a rodar com uma cadeira de madeira presa nos dentes, o anúncio a prometer farta cabeleira assentava numa ideia tão simples quanto preconceituosa, o (pre)conceito do que é «natural», e transmitia a mensagem de fatalidade: cada um deve aceitar o que lhe calha em sorte.
Num país onde naturalmente ninguém era racista nem preconceituoso, os jocosos anúncios desapareceram na voracidade do tempo efémero da publicidade, sem uma séria reflexão sobre o assunto.
E no entanto... Por estes dias, um acontecimento insólito trouxe à memória o «branco de carapinha». Num teatro de Lisboa, uma peça foi interrompida com a invasão do palco por alguém que assim protestava contra o facto de Lola, a «personagem trans», estar a cargo de um actor cisgénero. O sururu gerado impediu a continuação do espectáculo, o que é lamentável, e levou depois à substituição do actor por uma actriz trans, o que é no mínimo preocupante.
Compreende-se que o desespero suscitado pela discriminação e injustiça possa originar formas de luta questionáveis, o que não se compreende é que, em nome da solidariedade com os discriminados, se adopte e pactue com atitudes discriminatórias e castradoras.
É suposto que um encenador escolha os actores pelas suas qualidades e não pelas orientações de género ou outras. É suposto também que o papel a representar seja isso mesmo, uma criação artística, pelo que não é preciso um padre para representar um clérigo, um octagenário para interpretar um ancião ou um invisual para fazer o papel de cego. É suposto ainda que exista e se respeite a liberdade criativa. Caso contrário, como poderia o encenador Hugo Franco escolher João Mota para o papel de Bernarda Alba, da peça de Garcia Lorca, e pôr em cena uma história só de mulheres representada só por homens, que sem tibiezas assumem a sua masculinidade física?
Casos como o do São Luiz podem arregimentar apoio fácil, mas arriscam resvalar para o pantanoso terreno do «preto de cabeleira loura». E não, não é uma questão de género. Como na peça de Lorca, mais do que denunciar o machismo trata-se de mostrar que o exercício do poder não tem género. A precariedade que afecta os trabalhadores da cultura não se combate com guerras de Lolas. O inimigo é outro.