Combater as desigualdades para construir o Brasil da Esperança
Centenas de milhares de pessoas rumaram a Brasília no primeiro dia do ano para participar na tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil. No seu discurso, o novo Chefe de Estado brasileiro definiu como «grande marca» do governo que agora inicia funções o combate a todas as formas de desigualdade.
Lula da Silva é o presidente eleito com mais votos na história do Brasil
A cerimónia, que teve o seu ponto alto na Praça dos Três Poderes, no coração da capital política do país (planificada pelo arquitecto comunista Oscar Niemeyer), foi a vários títulos uma jornada inesquecível. Desde logo pelo seu significado político, consumando o afastamento da governação de extrema-direita de Bolsonaro e do seu trágico legado e a abertura de um novo ciclo, que se propõe a construir um Brasil da Esperança, como se denominou a frente eleitoral que reconduziu Lula da Silva ao Palácio do Planalto, 20 anos depois da sua primeira eleição.
Depois da sessão realizada no Congresso Nacional, o presidente passou em revista tropas e representantes dos três ramos das Forças Armadas e rumou no carro oficial, aberto, até ao local da cerimónia pública. Até aí tudo decorria como previsto no protocolo, apesar de múltiplas ameaças e apelos ao golpe, da acção de desestabilização e de outros gestos antidemocráticos promovidos por sectores apoiantes de Bolsonaro.
A supresa, de particular simbolismo e emotividade, estava guardada para pouco depois, quando Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alkmin, com as esposas Rosângela Silva e Lu Alkmin, subiram a rampa instalada junto à sede do governo acompanhados por oito pessoas – um operário, um idoso, uma criança, uma pessoa com deficiência, mulheres, negros e indígenas –, representando a pluralidade e a diversidade do país e as prioridades do novo governo. Com o presidente cessante ausente do país – significativamente, Bolsonaro viajou para os EUA dias antes –, a faixa presidencial foi colocada a Lula da Silva por uma mulher negra que recolhe resíduos recicláveis.
Na grande praça, nas avenidas adjacentes e no Festival do Futuro, realizado noutro ponto da cidade com a participação de 60 artistas, centenas de milhares de pessoas, vindas de todo o país, festejavam o regresso de Lula da Silva à Presidência do Brasil.
Marcaram também presença na tomada de posse representantes de 120 países, incluindo mais de meia centena de delegações de alto nível – o triplo relativamente a 2019.
Virar a página
As primeiras palavras do novo presidente do Brasil foram dirigidas aos milhares que ali se concentravam – vindos «de todos os cantos deste país, de perto ou de muito longe (…), numa verdadeira caravana da esperança» e que são muitos daqueles que nos últimos anos se bateram, por vezes em condições duríssimas de violência política antidemocrática, «nem que fosse para ganhar um único e precioso voto», e estiveram ao seu lado durante os 580 dias de prisão injusta, em Curitiba, na Vigília Lula Livre.
O presidente dirigiu-se também aos que optaram por outros candidatos, garantindo que vai governar «para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras» e não só para os que votaram nele: «vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra», destacou, acrescentando: «O povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático. Chega de ódio, fake news, armas e bombas.»
Porém, e como Lula da Silva fez questão de sublinhar, nada disto significa colocar uma pedra sobre o passado, antes pelo contrário: «o que o povo brasileiro sofreu nestes últimos anos foi a lenta e progressiva construção de um genocídio», afirmou, referindo-se aos 700 mil mortos por COVID-19, aos 125 milhões «sofrendo algum grau de insegurança alimentar», dos quais 33 milhões a passar fome, à redução dos recursos em alimentação, saúde e educação, à violência sobre mulheres e indígenas, aos recuos verificados nas políticas de igualdade e de protecção do ambiente.
«Nestes últimos anos, vivemos sem dúvida um dos piores períodos da nossa história.»
Reacender a esperança
Garantindo ser tempo de reacender a chama da esperança e da solidariedade, de «voltar a cuidar do Brasil e do povo brasileiro», o novo presidente adiantou o que considera necessário para o fazer: «gerar empregos, reajustar o salário mínimo acima da inflação, baratear o preço dos alimentos. Criar ainda mais vagas nas universidades, investir fortemente na saúde, na educação, na ciência e na cultura. Retomar as obras de infraestrutura e do Minha Casa, Minha Vida [programa de construção de habitações populares, lançado pelos anteriores govenos Lula], abandonadas pelo descaso do governo que se foi. É hora de trazer investimentos e reindustrializar o Brasil. Combater outra vez as mudanças climáticas e acabar de uma vez com a devastação de nossos biomas, sobretudo a Amazónia. Romper com o isolamento internacional e voltar a relacionar-se com todos os países do mundo.»
Lula da Silva considerou que «a volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro», e apontou o combate às desigualdades como principal prioridade do seu governo: «a fome é filha da desigualdade, que é mãe dos grandes males que atrasam o desenvolvimento do Brasil. A desigualdade apequena este nosso país ao dividi-lo em partes que não se reconhecem. De um lado, uma pequena parcela da população que tudo tem. Do outro lado, uma multidão a quem tudo falta e uma classe média que vem empobrecendo ano após ano». O presidente comprometeu-se ainda a lutar contra as desigualdades com base no sexo e de natureza racial, tendo para isso criado ministérios próprios.
Pelo Brasil mais justo que o percurso iniciado há 20 anos mostrou ser possível e que pretende agora retomar: no primeiro dia de governo, o presidente aumentou o valor da prestação social Bolsa Família e revogou a privatização da petrolófera Petrobrás, assim como de outras empresas estatais.
“Nestes últimos anos, o Brasil voltou a ser um dos países mais desiguais do mundo. Há muito tempo que não víamos tamanho abandono e desalento nas ruas. Mães garimpando lixo, em busca de alimento para os filhos. Famílias inteiras dormindo ao relento, enfrentando o frio, a chuva, o medo. Crianças vendendo bala ou pedindo esmola, quando deveriam estar na escola, vivendo plenamente a infância a que têm direito.”
“É inadmissível que os 5% mais ricos deste país detenham a mesma fatia de renda que os demais 95%. Que seis bilionários brasileiros tenham uma riqueza equivalente ao património dos 100 milhões mais pobres do país. Que um trabalhador ou uma trabalhadora que ganha o salário mínimo mensal leva 19 anos para receber o equivalente ao que um super rico recebe em um único mês.”
“É inaceitável que continuemos a conviver com o preconceito, a discriminação e o racismo. Somos um povo de muitas cores, e todas devem ter os mesmos direitos e oportunidades.”
“Foi para combater a desigualdade e as suas sequelas que nós vencemos a eleição. E esta será a grande marca do nosso governo. Dessa luta fundamental surgirá um país transformado. Um país grande, próspero, forte e justo. Um país de todos, por todos e para todos. Um país generoso e solidário, que não deixará ninguém para trás.”
Unidade e mobilização para superar obstáculos
Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse no domingo como o presidente mais votado da história do Brasil, com mais de 60 milhões de votos. Como o próprio afirmou na Avenida Paulista a 30 de Outubro, mal foram conhecidos os resultados da segunda volta das eleições presidenciais, tratou-se da vitória de um «grande movimento democrático» composto por personalidades, forças políticas e organizações sociais de áreas políticas e ideológicas muito diversificadas: foi esta ampla aliança que possibilitou a derrota do candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro (que obteve 49% dos votos).
A candidatura presidencial de Lula da Silva surgiu da Federação Brasil da Esperança, que agrega o Partido dos Trabalhadores, o Partido Comunista do Brasil e os Verdes, mas foi alargada a outros sectores: o convite ao ex-governador de São Paulo, Geraldo Alkmin (PSB), para concorrer à vice-presidência, é bem reveladora da abrangência desta frente eleitoral, que teve expressão formal na coligação Vamos Juntos pelo Brasil, constituída em Maio – e que à Federação Brasil da Esperança agregou PSB, Solidariedade, Federação PSOL-Rede, Agir, Avante e Pros.
Definida a disputa da segunda volta, contra Jair Bolsonaro, Lula da Silva continuou a somar apoios de ex-candidatos (como Simone Tebet e Ciro Gomes), senadores, governadores e partidos políticos que tiveram as suas próprias candidaturas na primeira volta, como foram os casos do PDT e do PCB.
Desafios e obstáculos
Muito embora tenham saído derrotadas das eleições presidenciais, as forças apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro conquistaram importantes posições no Senado e na Câmara dos Deputados – o Partido Liberal tem, em ambos os órgãos, as maiores bancadas –, bem como em diversos Estados, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro: este será um dos obstáculos à concretização dos objectivos estipulados pelo novo governo.
Mas há outros, porventura menos evidentes, mas nem por isso menos reais: os grandes interesses, influência e poder do grande capital brasileiro e as fortes posições que, no aparelho de Estado e no sistema mediático, continuam a ter as forças conservadoras e reaccionárias da sociedade brasileira. Os mesmos que estiveram por detrás do golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, e, dois anos depois, do processo político contra Lula da Silva, que determinou a sua inaceitável prisão entre Abril de 2018 e Novembro de 2019, impedindo-o de disputar as eleições presidenciais e abrindo o caminho a Bolsonaro para a presidência do país.
Já em 2017, fazendo no seu XIV Congresso uma avaliação de 13 anos dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o PCdoB considerava, entre outros aspectos, um «erro grave» precisamente o ter-se «mantido intacta a estrutura conservadora do Estado».
A própria abrangência política do novo governo, se por um lado é resultado da ampla frente criada para derrotar Jair Bolsonaro, também poderá criar dificuldades aos mais ambiciosos avanços progressistas. Certo é, porém, que é pejado de obstáculos o caminho a ser trilhado.
Mobilizar para avançar
No final da sua intervenção na cerimónia pública de tomada de posse, Lula da Silva garantiu que «precisamos, todos juntos, de reconstruir e transformar o Brasil. (…) Essa tarefa não pode ser de apenas um presidente ou mesmo de um governo. É urgente e necessária a formação de uma frente ampla contra a desigualdade».
Na verdade, e para além da coesão do próprio governo, o êxito da construção do almejado Brasil da Esperança depende em grande medida da unidade e capacidade de mobilização das forças progressistas e do movimento popular. Só assim será possível quebrar as resistências que se levantarão.
Aliás, foi precisamente esta a chave para retirar a iniciativa política à extrema-direita: a Vigília Lula Livre, que junto à cadeia de Curitiba exigiu a libertação do presidente ilegalmente preso durante todos os dias em que ali esteve encarcerado, as lutas pela democracia e os direitos que marcaram os últimos anos e a campanha eleitoral de massas em torno da Caravana Brasil da Esperança, foram fundamentais para o desfecho da contenda eleitoral. Uma mobilização e luta popular que há que prosseguir e desenvolver.
Legado a recuperar e aprofundar
Ao tomar posse, no passado domingo, como Presidente da República Federativa do Brasil, Lula da Silva assumiu o cargo pela terceira vez: a primeira foi em 2003 e a segunda em 2007. Sucedeu-lhe Dilma Rousseff, que exerceu essas responsabilidades entre 2011 e 2016, altura em que foi destituída por um golpe e substituída pelo seu vice-presidente, Michel Temer.
Entre os avanços mais significativos dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff contam-se a retirada de milhões de pessoas da pobreza, a criação de 20 milhões de novos empregos e os aumentos salariais sustentados. O programa Minha Casa, Minha Vida proporcionou habitação digna a quase sete milhões de brasileiros e o Luz para Todos beneficiou 15,6 milhões.
Na saúde, pese embora atrasos que persistiram, reforçou-se o serviço público e criou-se programas Mais Médicos, Farmácia Popular, Brasil Sorridente e outros, que contribuíram para a significativa redução da mortalidade infantil. Na educação, foram criadas 18 universidades federais e 500 novas escolas técnicas.
Com esses governos o Estado recuperou o seu papel enquanto alavanca de desenvolvimento, travando-se privatizações e fortalecendo-se empresas públicas, como a Petrobras ou o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social. Combateu-se as discriminções e o racismo, promoveu-se a igualdade entre homens e mulheres, valorizou-se o movimento popular.
Também durante esse período, o Brasil contribuiu significativamente para um importante impulso à integração na América Latina e Caraíbas, travando o projecto neocolonial da ALCA, promovido pelos EUA, e criando a UNASUL e a CELAC, e no plano internacional, através dos BRICS.