Escolhas e apagões

Gustavo Carneiro

O jornalismo – todo ele! – é feito de opções, sendo a primeira, porventura, a escolha, de entre uma infinidade de acontecimentos e assuntos, daqueles que serão notícia. Como se concretiza essa selecção depende de diversos critérios, nem todos meramente jornalísticos.

Outra questão, diferente mas não menos relevante, é a forma como essas notícias são elaboradas, mas esta crónica não é sobre isso: com ela pretende-se, apenas, recordar (ou, em alguns casos, até revelar) notícias que tiveram pouca ou nenhuma expressão na generalidade dos órgãos de comunicação social, pese embora o seu inegável interesse público.

Desde há meses que a situação na Ucrânia vem motivando – e justificadamente, reconheça-se – o interesse mediático, com dossiês e emissões especiais, debates e comentários quase diários. Contudo, passou despercebida a entrevista recente de Angela Merkel ao jornal Die Zeit, na qual a antiga chanceler alemã reconhece que a assinatura dos Acordos de Minsk teve menos a ver com uma real vontade de resolver o conflito que desde 2014 se travava no Donbass, e que custava milhares de vidas, do que com a intenção de dar tempo às forças ucranianas para se armarem e prepararem para o confronto com a Rússia.

Também em Outubro, as afirmações dos ministros da Economia da Alemanha, Robert Habeck, e de França, Bruno Le Maire, criticando os Estados Unidos por venderem gás natural aos seus países a preços astronómicos, não tiveram grande repercussão nas televisões, rádios e jornais do chamado mundo ocidental. Discreta foi, ainda, a divulgação dos dados que comprovam os brutais impactos das sanções na indústria dos principais países da UE (há já quem fale da desindustrialização da Europa) e a transferência de unidades da Volkswagen, da BMW, da Mercedes-Benz, da BASF, da Siemens ou da Lufthansa para os EUA, onde os custos com energia são mais competitivos.

Praticamente ausentes dos media estiveram igualmente as greves, concentrações e manifestações que, sobretudo desde Setembro, se têm vindo a realizar na Alemanha, na Bélgica, em França, em Itália, no Reino Unido, na República Checa e também em Portugal, pela valorização de salários e pensões, contra o aumento dos preços (sobretudo da energia), pelo fim da guerra e das sanções, por negociações de paz.

Assim, terão sido poucos os que ouviram os trabalhadores alemães a exigir «abram o NordStream já!», os italianos a criticar a adesão do seu país à «cruzada euro-atlântica de sanções contra a Rússia», os checos a acusar o seu governo de nada fazer para travar o crescimento da pobreza e os portugueses a afirmar que «o povo quer a paz, não o que a guerra traz».

A construção das narrativas «oficiais» faz-se tanto do que se mostra (e como se mostra) mas também do que se apaga.




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