Trevas

Anabela Fino

«De dia não se via nada, mas pla tardinha já se apercebia gente que vinha de punhais na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo neles. E os punhais não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençóis de linho escorridos de ombros franzinos. E a brisa que vinha dava gestos de asas vencidas aos lençóis de linho, asas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os medos que nasciam.»Este excerto de Trevas, de Almada Negreiros, que de tempos a tempos me assalta sem mais nem por quê, voltou-me à memória a propósito dos comentários sobre o Inverno que afinal, aparentemente para surpresa de uns tantos, está a chegar à Europa.

Enquanto na Ucrânia as consequências da guerra se tornam ainda mais dramáticas e penosas com o pronúncio do Inverno, no resto do velho continente a inflação ameaça gelar, literalmente, a maioria da população.

Ao mesmo tempo que a senhora Ursula don der Leyen insiste na necessidade de prosseguir a guerra, o descontentamento vem à tona. Em diversos países, como Portugal, Espanha, França, Itália, Bélgica, República Checa, Inglaterra, Bulgária, Alemanha, Países Baixos, Grécia, os trabalhadores fazem greve e saem à rua exigindo aumento de salários e pensões, controlo dos preços, políticas para pôr cobro aos lucros obscenos das grandes empresas, manifestam-se pela paz e contra a política suicida de sanções levada a cabo pela UE. Pela primeira vez em mais de 100 anos, milhares de enfermeiras e enfermeiros ingleses do sindicato Royal College of Nursing decidiram fazer greve. Sem pretender comparar o que não é comparável, quando o Inverno se fizer sentir com toda a intensidade e a penúria salarial e o preço escandaloso da energia, que segundo o Eurostat já aumentou mais de 40% este ano, tornarem proibitivo o aquecimento, é provável que «aqueça» o descontentamento social.

Descontente está também o capitalismo ligado ao sector produtivo, penalizado pelas sanções impostas pela NATO e seguidas pela UE. Se é verdade que o ramo armamentista vai de vento em popa, com a Alemanha a ocupar o quinto lugar dos exportadores mundiais, os restantes sectores da economia alemã apertam o cinto. Terá sido isso que levou o chancheler Scholz à China, a tratar de negócios, apesar de Washington ter declarado o país o principal adversário (inimigo?) a combater.

Na guerra comercial que travam contra Pequim, para impedir que se torne a principal potência a nível mundial, os EUA não hesitam em aumentar o proteccionismo, altamente lesivo das economias europeias, como as empresas alemãs já sentem na bolsa.

A questão que se coloca é a de saber até quando continuará a cegueira política da UE.

Voltamos a Almada Negreiros: «Veio a manhã e foi como de dia: não se via nada.»




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