Hipocrisia belicista

Gustavo Carneiro

A hipocrisia anda à solta.

Criticando a intervenção russa na Ucrânia, Joe Biden reafirmou o seu apego ao direito internacional, o mesmo que as tropas do seu país espezinham nas zonas ilegalmente ocupadas do Norte da Síria ou nos bombardeamentos na Somália, os últimos há poucos dias. Defende a liberdade dos povos escolherem o seu caminho, enquanto reforça criminosos e ilegais bloqueios contra Estados que não se submetem aos seus ditames. Fala na soberania da Ucrânia, mas tem como subsecretária de Estado a mesma Victoria Nuland que, em 2014, foi apanhada numa escuta (divulgada pela BBC!) a decidir, juntamente com o então embaixador norte-americano em Kiev, a composição do governo que sairia da chamada revolução de Maidan. Solidariza-se com o povo ucraniano, mas não hesita – como não hesitou – em lançá-lo em aventuras belicistas para servir interesses em tudo alheios aos seus.

Também Israel condena a iniciativa russa, considerando-a uma «violação da ordem mundial». Isto vindo do Estado que mais resoluções das Nações Unidas desrespeitou por ocupar ilegalmente, há décadas, territórios sírios e palestinianos. E que nestes últimos impõe um regime de apartheid, expulsa populações árabes dos seus bairros e aldeias, mantém presos centenas de menores e com frequência bombardeia zonas residenciais.

Já o secretário-geral da NATO reafirmou o compromisso com «todos os princípios fundamentais que sustentam a segurança europeia», esquecendo-se de referir que os sucessivos alargamentos da NATO, a proliferação de bases militares e a instalação de mísseis no Leste da Europa violam acordos estabelecidos e contribuíram decisivamente para a recente escalada de confrontação.

Nas instituições da União Europeia lamenta-se o «regresso da guerra à Europa», mas oculta-se que ela não começou agora e apaga-se responsabilidades próprias neste desfecho – com o apoio a forças russófobas, xenófobas e neonazis e a cumplicidade face ao conflito no Donbass (responsável por 15 mil mortes) e ao reiterado desrespeito pelos acordos de Minsk.

Por cá, de várias áreas surgiram defensores da pazde última hora, os mesmos que saudaram com entusiasmo as agressões dos EUA e da NATO à Jugoslávia, ao Iraque, ao Afeganistão, à Líbia ou à Síria e que, como bons incendiários, reclamam mais NATO, mais armas, mais pressão a Leste. Ou seja, mais daquilo que nos trouxe até aqui.

Estes hipócritas estão dispostos a sacrificar até ao último ucraniano na sua cruzada, que atingirá em primeiro lugar esse martirizado povo.

Por isso, tudo farão para desacreditar os que, como o PCP, estão onde sempre estiveram: do lado da paz, do desarmamento, da solução negociada dos conflitos, da legalidade internacional, dos direitos dos povos. Na Ucrânia como em todo o mundo.

 



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