Plataformas digitais são novas roupagens para a velha exploração
AUDIÇÕES Os deputados do PCP no Parlamento Europeu (PE) promoveram, nas últimas duas semanas, três audições sobre questões de viva actualidade, nas quais se procedeu ao diagnóstico dos problemas, apontou-se responsabilidades e vincou-se a necessidade de os superar.
O PCP reafirmou compromissos claros
A situação dos trabalhadores da aviação civil e a crise no sector estiveram em foco dia 12, na Casa do Alentejo, em Lisboa. Semelhante iniciativa decorreu dia 19 a respeito do impacto do confinamento nas crianças e nas famílias (ver caixas).
Também na Casa do Alentejo, dia 18, foi promovida pelos eleitos comunistas em Estrasburgo uma audição subordinada ao tema «Plataformas digitais – tecnologia, trabalho e exploração», na qual participou e interveio Jerónimo de Sousa.
Sandra Pereira apresentou e moderou um debate que coube a João Ferreira abrir, lembrando que se estamos perante uma «revolução científica e técnica susceptível de modificar a vida económica e social com profunda implicações na produção e na distribuição da riqueza, no emprego e na sua qualidade, na acção colectiva e luta dos trabalhadores», não é menos verdade que a aparência moderna das plataformas digitais, «através das quais se busca e oferece trabalho, frequentemente reproduz, no século XXI, desapiedadas formas de exploração conhecidas do século XIX».
Assumem-se como «praças de jorna digitais, nas quais milhares de trabalhadores competem pelo direito a ser explorados durante uns minutos, umas horas ou uns dias», desnudando «uma nova forma de proletarizar». Trabalhadores desorganizados nainiciativa reivindicativa e com ilusões sobre trabalho por conta própria que, em rigor, é por conta de outrem, acrescentou João Ferreira.
Aliás, para o sociólogo Tiago Vieira, «o “trabalho por plataformas” não existe». O que existem «são actividades remuneradas intermediadas» porentidades patronais camufladas na ausência de vínculos formais, masque dominam todo o processo e absorvem a fatia de leão da mais-valia.
«De forma gradual», disse, «as plataformas digitais estão a ocupar o espaço das empresas de aluguer de mão-de-obra, só que oferecendo condições de trabalho ainda piores» e impondo critérios de distribuição de tarefas e de avaliação determinados por algoritmos que ninguém escrutina.
Esta última questão foi uma das abordadas por Anabela Carvalheira, da Fectrans, que traçando um retrato da situação específica no sector dos transportes, sublinhou que muitos dos que foram seduzidos pelo transporte de passageiros em viaturas descaracterizadas percebem agora que dependem totalmente de fórmulas de selecçãoque desconhecem, que o seu ganha-pão pode simplesmente desaparecer se a operadora privada os desligar. Considerou, além do mais, que não é tempo para desistir na defesa dos direitos laborais, pelo contrário.
Ora, segundo Joaquim Dionísio, advogado, as plataformas não trazem novidades relevantes no fundamental da relação trabalhador-patrão, somente retrocesso. Por isso em causa está um problema político e não jurídico, não se justificando que as suas práticas sejam motivo para alterar a legislação vigente.
Sobre a emergência da organização e luta dos trabalhadores, de contestação massiva da sobre-exploração, pronunciaram-se, igualmente, Nelson Paiva, para quem é crucial desmontar a ideia, difundida pelo capital e por muitos assimilada, de que são «empresários e independentes», e por Andrea Araújo, da Comissão Executiva da CGTP-IN, que insistiu na necessidade de enquadrar aqueles trabalhadores no acervo legal existente e responder a novas exigências para aumentar a mobilização reivindicativa.
Moderno...
Da Área Metropolitana do Porto, José Pedro Faya, estudante-trabalhador, trouxe o testemunho vivo de quem pedala quilómetros a fio, faça chuva ou sol, seis dias por semana, ligado e disponível dez, 12 e mais horas, sem garantia de rendimento ou direitos elementares. Precariedade que Gonçalo Francisco, também militante e dirigente da JCP, confirmou e a organização revolucionária da juventude tem constatado em contactos nas imediações de grandes superfícies comerciais e de cadeias de restaurantes.
Desenvolvimento tecnológico é, assim, sinónimo de progresso no modo de produção capitalista? Ana Oliveira, economista, e Helena Silva, assessora do grupo Parlamentar do PCP na Assembleia da República, sustentaram que não. A primeira considerando que a questão está em quem usa e com que propósito instrumentos proporcionados pela digitalização, automação e computação.
...como há 150 anos
Antes de o Secretário-geral do PCP encerrar a audição, Franco Tomassoni, investigador, chamou à atenção que algumas das plataformas digitais têm como negócios não desprezíveis a venda de dados apurados e, paralelamente, o seu uso para formatar modelos de cidade no interesse das multinacionais.
Jerónimo de Sousa, por fim, reiterou que «à sombra das plataformas digitais o capitalismo quer vender-nos a ideia de legalizar novas formas de flexibilidade laboral, apresentando-as como muito modernas e de futuro». Isto depois de invocar os 150 anos da Comuna de Paris, que nesse dia se assinalavam, recordando, a propósito, que o debate ocorrido teve como pano de fundo «algo muito velho: as praças de jorna e a exploração capitalista», contra o que os communards se levantaram heroicamente.
O Secretário-geral do Partido salientou, por outro lado, três aspectos: o facto de a lei portuguesa proibir a maioria dos abusos cometidos sobre os trabalhadores, e, nesse sentido, ser útil «questionar as autoridades públicas e o Governo» sobre o que «fizeram para impedir estas práticas ilegais»; o facto de ser inaceitável que a UE, alegadamente preocupada com os trabalhadores, dê «segurança jurídica às plataformas digitais impondo a revisão da legislação laboral»; a confirmação de que, «enquanto o modo de produção dominante for o capitalismo», todas as potencialidades e avanços são «pervertidosao serviço da acumulação privada de uma ínfima minoria».
Jerónimo de Sousa aproveitou igualmente para deixar compromissos claros, designadamente «iniciativas concretas que visam quer a clarificação de aspectos do Código de Trabalho quer o reforço da eficácia dos mecanismos de regulamentação e fiscalização da actividade das plataformas digitais», visando assegurar que os trabalhadores são reconhecidos como dependentes,têm contrato de trabalho, salário, horário e direito a retribuição por jornadaextraordinária ouem período nocturno, a condições dignas, à protecção na doença, férias pagas e direito à parentalidade, a conhecer os algoritmos utilizados pelas plataformas, expurgados dos mecanismos ilegais de aplicação de sanções, castigos e multas.
Crianças e jovens têm direito
ao desenvolvimento integral
O dia 19 de Março foi o escolhido pelos deputados do PCP no PE para debater «o impacto do confinamento nas crianças e nas famílias – perspectivas e soluções». Na audição, que decorreu via Internet, participaram João Ferreira e Sandra Pereira, os psicólogos Bruno Ferreira e Fernanda Salvaterra, os investigadores Rita Codovil e André Pombo, o médico pediatra Mário Cordeiro, a educadora Ofélia Libório e a dirigente sindical Ana Pires.
Cada um a partir da sua perspectiva, todos os oradores concordaram com a necessidade de assegurar às crianças e aos jovens o ensino presencial, a actividade física e a liberdade de brincar: ou seja, precisamente aquilo de que a maioria não pode ainda beneficiar, dado muitas escolas, espaços públicos e actividades lúdicas e desportivas permanecerem de portas fechadas. E alertaram ainda para as consequências que o confinamento (neste caso, aliado ao medo) tem nas crianças e nos jovens, algumas das quais já hoje verificáveis: o aumento de peso, os problemas de sono, a degradação da saúde mental, a perda de capacidades motoras e intelectuais, a violência doméstica.
Unânime foi também a constatação de que estes problemas, na sua maioria, não surgiram em Março de 2020, com a epidemia de COVID-19. Vinham de trás, mas agravaram-se neste último ano. Paradigmático é o caso da actividade física das crianças e jovens: Portugal já antes apresentava taxas baixíssimas, que caíram drasticamente nos últimos 12 meses.
Medidas que se impõem
É urgente abrir as escolas de todos os graus de ensino. Esta foi mais uma convicção unânime de todos os participantes na audição, partilhada com muitos outros especialistas de várias áreas relacionadas com a infância, adolescência e pedagogia. O ensino à distância não só degrada as aprendizagens, como priva os estudantes do essencial convívio com os colegas. Além disso – o que não é menos importante –, acentua as desigualdades sócio-económicas.
Houve quem tenha sublinhado ainda o carácter irreversível de algumas perdas verificadas neste período, sobretudo ao nível pedagógico, o que coloca uma urgência ainda maior na reabertura imediata das escolas, salvaguardando evidentemente todas as questões relacionadas com a protecção sanitária. A contratação de mais auxiliares e a redução da dimensão das turmas são algumas das propostas.
Para lá da reabertura, falou-se do papel da escola pública enquanto espaço de aprendizagem, convívio e inclusão, que contribua para a diminuição das desigualdades. O que requer uma reflexão profunda e a assumpção de medidas que o possibilitem.
As reais condições para os pais cuidarem dos seus filhos em tempos de confinamento foi outra das temáticas em análise. A salvaguarda dos direitos e dos rendimentos é, neste aspecto, uma questão crucial.
Na aviação são os trabalhadores
as primeiras vítimas da crise
A situação dos trabalhadores da aviação civil e a crise no sector estiveram em debate no dia 12, na Casa do Alentejo. Para além dos dois deputados do PCP no PE, estiveram presentes trabalhadores de várias empresas do sector e membros das suas organizações representativas. A reestruturação da TAP, a luta na Groundforce e as consequências gravosas da privatização da ANA foram alguns dos assuntos suscitados nos testemunhos dos trabalhadores.
O sector da aviação civil vive hoje a «maior crise de sempre» e só não foi completamente destruído (com os profundos impactos que tal destruição teria na economia e na mobilidade) graças aos avultados apoios públicos disponibilizados às transportadoras aéreas: os EUA, o Reino Unido e a Alemanha destacam-se pela dimensão dos apoios concedidos.
A este respeito, tanto João Ferreira como Sandra Pereira, denunciaram a diferença de tratamento entre a Alemanha, por um lado, e países como Portugal, a quem não é «permitida» a injecção de capital público na TAP. Nesta União Europeia, há dois tipos de países: os born to rule (nascidos para governar) e os born to be ruled (nascidos para serem governados), como bem caracterizou Sandra Pereira. E, dentro desta diferença, uma outra: as empresas públicas de bandeira são o parente pobre.
Se a origem da crise está ligada à situação pandémica, determinante para a redução de dois terços no tráfego aéreo mundial, a dimensão e distribuição dos seus efeitos tem causas mais profundas, que resultam das transformações que o sector sofreu nas últimas décadas: concentração empresarial, liberalização do sector, precarização das relações laborais.
Reconstruir o sector público
Portugal não passou ao lado desta realidade: a privatização da TAP, da ANA e da NAV teve impactos profundos na economia e na soberania nacionais, na qualidade e fiabilidade do serviço e nos direitos dos trabalhadores. Destes últimos falaram muitos dos participantes na audição, que deram conta do agravamento verificado no último ano: milhares de trabalhadores foram despedidos, desde logo os que tinham vínculos laborais mais frágeis, os rendimentos foram reduzidos e agravou-se a tendência para a desregulação dos horários.
Se a situação é difícil, o histórico das lutas dos trabalhadores do sector dá motivos de sobra para confiar no futuro – como afirmou João Ferreira na intervenção de encerramento da audição. A unidade e a luta dos trabalhadores da aviação, lembrou o deputado comunista, foi capaz de travar algumas das intenções mais gravosas de sucessivos governos, ao serviço das multinacionais do sector, e defender importantes direitos e garantias.
É isso que terá de continuar a fazer – e está já a fazer, como demonstra a luta na Groundforce – para resistir a esta nova ofensiva e reconstruir o sector aéreo público, única forma de garantir que serve os interesses nacionais e salvaguarda os direitos de quem nele trabalha. O PCP há muito que, no plano político, apresenta essa proposta, cujo êxito depende em grande medida do alargamento da luta dos trabalhadores por esse objectivo.