Os sucedâneos
Chegaram há cerca de um ano à Assembleia da República com os discursos (e os jeitos) bem ensaiados: há que mudar o sistema, refundar o regime, combater a corrupção, libertar a Constituição da sua carga ideológica. Aproveitando-se de ventos mediáticos favoráveis, Chega e Iniciativa Liberal apresentaram-se como produtos novos, impolutos, vindos de fora do sistema…
Mas será mesmo assim? Uma breve incursão pelas biografias dos seus deputados basta para que se conclua que não. João Cotrim Figueiredo, da IL, foi não só presidente do Turismo de Portugal como passou pelas administrações da Compal, da Privado Holding (dona do BPP, de Rendeiro) e da TVI. Haverá alguém mais beneficiado com o sistema do que o grande capital que tão fielmente serviu (e serve)?
Quanto a André Ventura, antes de se tornar pupilo do velho fascista Diogo Pacheco de Amorim (cúmplice de Spínola no sinistro MDLP) e de ser publicamente apoiado por criminosos neonazis, fez o seu caminho num dos partidos do regime que jura agora abominar: passou pela JSD e, ainda em 2017, surgiu como candidato a uma câmara municipal da Área Metropolitana de Lisboa pelo PSD, cuja liderança, aliás, se propôs disputar com Rui Rio. Do currículo profissional consta a passagem pela Finpartner, empresa de aconselhamento fiscal – leia-se, de ajuda à fuga e evasão fiscais –, função que acumulou com o cargo de deputado.
Se das figuras passarmos para as políticas, a conclusão não se altera: só nos últimos meses, IL e Chega juntaram o seu voto (ou a sua ausência) a PSD e CDS – e, diga-se, também ao PS! – para impedir aumentos salariais dignos, a protecção de quem trabalha por turnos, o fim dos bancos de horas nas empresas e das propinas no Ensino Superior, a contratação de mais profissionais para creches e centros de dia. Quanto pior (para o povo), melhor (para eles) parece ser a sua consigna.
Também o que se conhece dos seus projectos de revisão constitucional aponta no mesmo sentido: a privatização das funções sociais do Estado, as limitações de direitos e liberdades, o reforço de tendências autoritárias e a imposição de tenebrosas medidas de regressão civilizacional são sonhos antigos, mesmo que nem sempre assumidos, da dita direita tradicional. Razão tem o PCP quando considera essas forças sucedâneos reaccionários de PSD e CDS.
Os perigos que o Chega, a Iniciativa Liberal e os interesses que ocultam representam para a democracia e os direitos são reais, sérios e devem ser combatidos. Mas importa não esquecer que ambos nasceram (e medram) da política de direita e do seu lastro de exploração, injustiças e desigualdades. E é esta, antes de mais, que importa derrotar.