Casa-trabalho-casa

Margarida Botelho (Membro da Comissão Política)

A partir do início de Março e durante o confinamento dos primeiros meses do ano, o discurso de protecção do vírus centrou-se sobretudo no «fique em casa». Agora o discurso é diferente: «isolamento social», não arrisque, reduza os contactos ao mínimo.

Nas últimas semanas, ao discurso juntaram-se outras medidas, como o estado de emergência ou a proibição de circular entre concelhos, que outras páginas do Avante! tratarão com outra profundidade. Aqui, pretende-se apenas chamar a atenção para o discurso dominante sobre a protecção do vírus. Em vez de medidas de reforço claro do Serviço Nacional de Saúde, de promoção da saúde, de defesa dos serviços públicos, de protecção das condições de trabalho, todo o discurso mediático e do Governo se centra na responsabilidade individual e no isolamento.

Reduzir a vida ao mínimo é a palavra de ordem. Ir de casa para o trabalho e regressar depressa, comprar on-line e conviver por vídeo-chamada é o modelo ideal, só suplantado se se puder substituir trabalho presencial por teletrabalho. No caso das crianças e dos jovens, troque-se «trabalho» por «escola», no caso dos reformados e desempregados, substitua-se por nada, só televisão, Internet e sofá.

A culpabilização individual e de certos grupos regressou em cheio: se primeiro eram as crianças («os sacaninhas quase não ficam doentes mas transmitem muito»), depois os idosos (tratados como irresponsáveis), depois a «afectividade» do pessoal do norte, depois o apreço dos utentes da linha da Azambuja e de Sintra por viajar apertados, depois os ajuntamentos dos adolescentes, as festas «ilegais», a Festa do Avante! ou o 1.º de Maio.

Não é a primeira vez que os comportamentos individuais são apresentados como responsáveis de situações graves, até no plano mundial. Todos se recordarão de quando «vivemos acima das nossas possibilidades», causámos uma crise mundial e fomos obrigados a chamar a troika...

Operação ideológica profunda

Não está em causa a necessidade da pedagogia de medidas de protecção individual face à epidemia. Antes pelo contrário: se há força que desde a primeira hora as defendeu, tomou e provou serem possíveis foi o PCP, nas suas reuniões, actividades públicas, na Festa do Avante!, mais recentemente na construção do Congresso.

O que está em curso é uma operação ideológica profunda, bem para lá de qualquer incapacidade, incompetência ou da vontade de aproveitar a situação para entregar grandes fatias de negócio ao grande capital, seja na saúde ou no comércio.

Tornar censuráveis todas as esferas da vida que não sejam «produtivas», promover o isolamento dos indivíduos, dividir para reinar. Muitos dos que criticam o vizinho por sair para jantar, ou o colega por ir ao plenário do sindicato, não terão consciência desta operação, mas ela existe.

Passear, fazer desporto, ir a um equipamento cultural, ter intervalos ao ar livre na escola, manter convívio e ligação com a família e os amigos fazem parte da vida, de uma vida saudável. Ter actividade cultural, desportiva, recreativa, associativa, sindical, política, são direitos, não são luxos, nem privilégios, nem comportamentos irresponsáveis.

A desproporção de acções de «fiscalização» como aquelas a que assistimos no acesso às pontes sobre o Tejo há dois fins-de-semana fica ao nível daqueles patrões que acham que podem impedir a realização de um plenário daqueles que trabalham lado a lado todos os dias, ou das autoridades que acham que podem proibir uma manifestação, mesmo que tenha mais distanciamento físico, máscaras e álcool gel do que qualquer rua, autocarro ou comboio do País.

A mensagem é clara: podes trabalhar praticamente em todas as condições, conviver e organizar-te é que não. A nossa resposta é tão clara como a provocação do capital: trabalhar sim, com direitos, e garantir condições para que a vida nacional continue em segurança em todas as suas esferas.




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