A Rússia pela esquerda

Luís Carapinha

A fixação anti-russa nada tem a ver com a defesa da democracia

A votação da reforma constitucional na Rússia atingiu os objectivos colocados pelo Kremlin. Num quadro pandémico, o funcionamento alargado das urnas (uma semana) e a flexibilidade de meios de captação do voto (dos postos móveis à votação online) ajudaram a garantir uma afluência e apoio na ordem dos 68% e 78%, o que significa que pouco mais de metade dos eleitores russos aprovou o pacote de 206 emendas à Constituição pós-soviética de 1993.

O processo foi enquadrado nas celebrações do 75.º aniversário da Vitória, com a parada militar na Praça Vermelha na véspera da abertura das urnas, e Putin a fazer o derradeiro apelo ao voto na inauguração do memorial ao soldado soviético em Rjev um dia antes da data oficial do escrutínio, 1 de Julho. Uma das emendas coloca a zero a contagem das presidências de Putin, permitindo a sua candidatura a mais dois mandatos. Os circuitos do pensamento dominante não desperdiçaram a oportunidade para anatemizar o presidente russo e apontar o dedo ao autoritarismo do regime. Mas terá a fixação anti-russa dos sobressaltados guardiões da ordem dominante em declínio a ver, realmente, com a apregoada defesa da democracia? Obviamente que não, por muito que se esmerem na elucubração de artificiosos conceitos, tipo putinismo.

Para os mentores e acólitos do mundo transatlântico tudo estava bem na Rússia de Iéltsin e a Constituição de 1993, aprovada sob os escombros do parlamento liquidado a tiros de tanque, é o supra-sumo da democracia. As confissões, entrelinhas, do establishment acerca daqueles anos não fazem as parangonas da imprensa: «(…) na Rússia e Ucrânia (…) a terapia de choque apoiada pelo Ocidente empobreceu dezenas de milhões [de cidadãos] ao mesmo tempo que criou uma classe opulenta de oligarcas que transformou os antigos activos estatais em impérios pessoais» (Foreign Affairs, 09.06.2020).

O que perturba a corte numerosa que, colocando o mundo ao contrário, vitupera o «revisionismo» da China e Rússia na cena internacional, despreza e difama o contributo fundamental da URSS para a derrota do nazi-fascismo, ao mesmo tempo que não consegue enxergar as pontas do neonazismo na Ucrânia pós-golpe de estado de 2014, não é o complexo domínio oligárquico na Rússia, nem os vínculos de dependência da economia aos centros da finança internacional ou os efeitos da exploração capitalista na degradação das condições de vida da população. O que tira o sono aos abutres do imperialismo é a não dissolução da política externa russa aos magnos desígnios de um G7 em agitada luta contra o tempo para disciplinar contradições e curar feridas profundas.

A Rússia está numa encruzilhada. A questão da coesão e integridade territorial da Federação não é um assunto do passado, 20 anos após a guerra na Tchetchénia. O alargamento e pressão militar da NATO não cessam, agravados com a paulatina destruição pelos EUA dos tratados de desarmamento. Tal como o corrupio das sanções.

O sentido contraditório das emendas aprovadas não altera no fundamental o texto de 1993, reforçando os mecanismos de centralização do poder. Não estranha que o PCFR e outras forças da esquerda tenham apelado ao voto contra ou boicote do processo. Perante um horizonte carregado, impõem-se uma real viragem popular e uma ruptura da política interna, salvaguardando e resgatando o futuro do país. Nos caminhos do progresso social e do socialismo.




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